domingo, 16 de agosto de 2009

Pensamento mágico e realidade

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Por Manuel J. Pires dos Santos (psiquiatra e psicanalista)

O bicentenário do nascimento de Darwin e o sesquicentenário da publicação da Origem das Espécies, neste ano, têm trazido frequentemente ao noticiário a oposição ferrenha e contínua da teoria criacionista à teoria darwiniana. Darwin sabia bem a dimensão do conflito que estava gerando ao divulgar suas ideias, opondo uma teoria científica a uma crença religiosa.

Significativo é que esse confronto, religião versus ciência, é apenas uma das manifestações de um fenômeno mais amplo: o conflito perene entre o pensamento mítico ou mágico (neste caso, religioso) e o pensamento de base racional ou lógica (neste caso, científico) que cada um de nós traz dentro de si. Não nos damos conta, usualmente, do quanto somos governados por crenças (conscientes e inconscientes) que não têm nenhuma base lógica, isto é, real.

Exemplos: a crença em horóscopos, promessas, “simpatias”, “bater na madeira” para evitar a ocorrência de algo prejudicial, a repetição, em dadas situações, de um gesto que “deu certo” uma vez etc. Quem já não cruzou os dedos (como se isso pudesse ter algum efeito) diante de um pênalti contra seu time? Tais crenças e/ou atos não têm o menor sentido no mundo real, mas povoam nosso dia a dia sem nos darmos conta. E tais crenças não são o apanágio dos menos cultos ou pouco letrados. Os mais letrados e mais cultos tendem a pensar lógica e realisticamente apenas numa estrita área (em geral, profissional). Fora dela, o raciocínio lúcido quase desaparece e as crenças mágicas tendem a dominar.

O que há de comum nessas crenças? A ideia de que podemos agir sobre fatos que não estão sob nosso alcance, de que não somos impotentes diante do que nos ameaça ou prejudica. Se fizermos tal ou qual coisa (um gesto, uma promessa, uma oração, um “pensamento positivo”, uma consulta aos astros etc.), conseguiremos o que desejamos. E, se isso não acontecer agora, na próxima vez acontecerá. Porque não podemos aceitar nossa impotência, nossa limitação. Assim, se por um lado vivemos dentro da realidade, buscando alcançar realisticamente alguns de nossos objetivos, por outro lado nos negamos a aceitar, conformadamente, que há coisas fora de nosso controle, nos acreditando com um poder que de fato não temos.

Por que tal dualidade do pensar? O pensamento de base na realidade surge e vai se firmando ao longo do desenvolvimento do indivíduo, isto é, no contato com a realidade concreta. Com o tempo, vai se estendendo para fenômenos além dessa realidade imediata, fora do campo sensorial. Acabamos por admitir que existem fatos independentes de nós e sobre os quais não temos ação. Mas, por trás dessa visão baseada na experiência, permanece atuando outro tipo de pensamento, surgido anteriormente, no início do desenvolvimento infantil, quando o que era real e o que era fruto de nossa imaginação (e da nossa fantasia) não eram ainda diferenciados. A necessidade de proteção, alimento, amor, abrigo – amparo, enfim– impõe-se desde o nascimento e é sentida pela criança como vital: sem tais aportes, não há sobrevivência. O desamparo do animal humano ao nascer é total. Sem o outro (e o amor do outro) não sobrevive.

Tal desamparo cria a necessidade da crença em pais fortes, poderosos e protetores. Na vida adulta, permanece a necessidade dessa crença em poderes maiores que os nossos para nos fazer enfrentar as vicissitudes da vida. Entre essas, a morte é a mais temida; daí, a necessidade de negá-la: a religião é uma dessas formas de negação. Atribuir a uma divindade poderosa nossa origem (diferentemente dos outros seres da natureza) nos dá a ilusão de proteção e amparo e a possibilidade de que tal divindade nos acolha – como nossos pais nos acolhiam – e acate nosso desejo. Afinal, em todas as crenças religiosas há sempre uma forma (como a oração, o sacrifício ritual etc.) de convencer os deuses a agirem a nosso favor.

A primeira prece que o homem primitivo elevou aos céus, buscando a proteção e a misericórdia de seus deuses, foi já uma tentativa de dominar o acontecimento que escapa ao seu controle: a chegada da chuva, a cura de uma doença, a proteção contra os perigos da vida. Viver sabendo que temos limitadas capacidades e que o sofrimento e a morte são inevitáveis é insuportável para quem acredita não ser possível contar apenas consigo mesmo e com seu próximo.


(Publicado no Jornal Zero Hora em 16.09.2009)
Dica do Renan Oliveira

10 comentários:

Marília Lila disse...

Perfeito. E acho que também há aquela necessidade de se sentir especial, “escolhido”, que tanto horóscopos, quanto religiões e superstições de todo tipo fornecem. Uma sensação de poder ordenar um mundo que seria repleto de energias desconhecidas e mágicas; além do que, talvez seja mais simples conceber o mundo assim que estudá-lo realmente em todos os seus aspectos, entender cientificamente as coisas, né?

E este blog é muito bacana! Bom terminar o fim de semana por aqui. =)

Osame Kinouchi disse...

Talvez queiram comentar isso:

http://ccientifica.blogspot.com/2009/08/duas-luas-na-noite-sem-lua.html

Osame Kinouchi disse...

Acho que isso dá um bom debate:
http://comciencias.blogspot.com/2009/08/so-ateus-podem-ser-presidentes.html

Jeferson Arenzon disse...

Osame,

É preciso esperar para ver a posição da Marina sobre se suas crenças influenciarão suas posições políticas. Se for assim, a dicotomia acima (itens 1 e 2) não fará tanto sentido, e terás uma opção 3 onde um candidato, além de religioso, também terá posições políticas estranhas às suas (ou, pelo menos, às minhas). O que, ao meu ver, é suficiente para excluí-lo.
Abs,
Jeferson

Mauro Paz - Blogger disse...

Maria é evangêlica fanática, e se deixar essa pessoa ser presidente do Brasil nossas escolas viraram encubadoras de pequenos evangélicos fanaticos, cairemos no fundamentalismo evangélico, no caos total, teremos muitas brigas na justiça contra as posições que um presidente como a Marina pode ser tornar, não confio em alguem que diz querer fazer o bem elevando a mentira religiosa a um pedestal maior que o direito do cidadão.

Mauro Paz - Blogger disse...

O nome certo é Marina, desculpe.

Fernanda Poletto disse...

Oi!

Infelizmente não é só aqui na UFRGS que espitirualidade e ciência são fundidas de forma desparatada.... Na UFRN tmbém. Dêem uma olhada nesse texto, do blog 42.
http://scienceblogs.com.br/uoleo/2009/08/auto-hemoterapia_e_a_medicina.php

Luiz Bento disse...

[Offtopic] Lembrei do blog de vocês quando vi isso:

http://www.flickr.com/photos/volcanologist/2878457358/

http://www.flickr.com/photos/volcanologist/2878457138/

Parabéns pelo blog.
Abraços.

Jeferson Arenzon disse...

Luiz e Lila,

Obrigado pelos elogios!
Abs,
Jeferson

Carlos Silva disse...

Pois é ... realmente é complicado enveredar para além do nosso umbigo.
A proposta de investigação do universo pela ciência trás cada vez mais informações. Informações essas que são traduzidas aos nossos sentidos, mas, pela complexidade escapam ao entendimento da maioria, incluindo o próprio meio acadêmico. Daí criarmos “cacuetes” próprios; é o maior contra-senso, mas tendemos a relevar esses deslizes. É impossível ser “entendido de tudo”, embora seja plausível acreditar que, mesmo não entendendo tudo que foi produzido, isso gere benefícios. O complicado na visão de mundo pelo pensamento racional é que ele não responde imediatamente nossas ansiedades e, caso faça isso, pode logo em seguida ser testado e contestado.
Infelizmente (ou felizmente) as religiões simplificam em demasia o universo a fim de que nos sintamos seguros; têm a “fórmula” de como tudo começou e terminará. É mais fácil para qualquer um.
Por outro lado, se as formigas se dessem conta de como nós vivemos, provavelmente ficariam embasbacadas de como drenamos esforços para gerar conhecimento que melhore a vida na terceira idade, aumente a longevidade de portadores de necessidades especiais e doenças graves, abrigue e alimente delinqüentes, invista no aumento da produção agrícola, mesmo com um desperdício gritante e por aí a fora.
De qualquer maneira, não somos formigas, então me resta acreditar que uma sólida instrução universal promova um arrefecimento dessa intolerância à investigação racional e, ao mesmo tempo, também permita que o racionalismo não iniba as manifestações culturais espontâneas, fontes de geração de produção artística e filosófica, através das quais a própria religião tantas vezes se manifesta.
Finalmente, fora as manifestações religiosas sectárias, não esqueçamos que qualquer tentativa de valorizar as ciências e o desenvolvimento humano por estas bandas corre o terrível perigo de ser soterrado por algum imbecil indicado por político safado, para o qual o desenvolvimento científico é simplesmente fonte de retórica e a própria religião é apenas plataforma para pretensões futuras de aumento patrimonial.