terça-feira, 8 de outubro de 2013

Primum non nocere... e a pseudociência do proibicionismo

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Artigo publicado por Jorge A. Quillfeldt na Scientific American Brasil do mês de outubro, sob o título "O paradoxo das drogas", sobre o complexo debate - em parte científico, em parte político-cultural - que é o da legalização das drogas na perspectiva da chamada redução de danos.


Primum non nocere
Da pseudociência do proibicionismo ao primado da redução de dano


O debate da descriminalização das drogas cresce no mundo todo, muito em função do recente reconhecimento do fracasso da chamada Guerra às Drogas, como opinam várias autoridades e mesmo organismos internacionais, como a OEA. A mais recente expressão da chamada concepção proibicionista foi também o mais longo experimento social realizado globalmente - quatro décadas - com resultados pífios, pois o consumo mundial de drogas não diminuiu, mas a violência aumentou. Podemos constatar isso das favelas do Rio aos territórios cartelizados no México para citar apenas dois exemplos.

A existência de efeitos adversos nem sempre implica em interdição: fosse esse o caso, se proibiria o uso do automóvel, por exemplo. Neste caso, em notável contraste com o caso das políticas de drogas, quem maneja o risco é o usuário, ao seu critério. Mesmo assim, efeitos adversos devem ser levados em conta ao se elaborar políticas públicas.

O proibicionismo baseia-se em dois pilares, a crença de que se determinadas ações consideradas imorais ou perigosas forem legalmente proibidas, as pessoas se absterão de praticá-las, e a implementação da repressão, para garantir isso. Embora a repressão tenha certa eficácia, seu limite será sempre a natureza da proibição: se não houver um real acordo social, ela não funcionará. Se a proibição visar práticas culturais arraigadas, especialmente aquelas que não colocam em risco outras pessoas sem seu consentimento, as pessoas continuarão interessadas, fomentando um mercado paralelo que é o terreno fértil para o crime. A Lei Seca norte-americana é um exemplo claro disso, e, afora alguns bons personagens da literatura daqueles anos, seu principal fruto foi a consolidação do crime organizado impulsionado pelo mercado negro.

Mas se a Guerra às Drogas foi uma experiência de longo prazo que se mostrou ineficaz e as metas de tais políticas são impraticáveis, qual a alternativa? A alternativa são as políticas de Redução de Dano nas quais o uso é regulamentado ou tolerado para permitir investimentos eficazes na educação, prevenção e principalmente na assistência médica àqueles que desejam reverter a dependência, considerada uma doença.

Do ponto de vista legal, o uso de drogas pode ser regulamentado ou tolerado, raramente sendo “liberado”. A regulamentação obedece gradações, indo da proibição total à despenalização, à descriminalização e, por fim, à legalização. A tolerância é uma atitude política possível em qualquer desses regimes, podendo ocorrer mesmo em países em que o uso dessas substâncias não é estritamente legal (por exemplo, o uso da maconha na Holanda e em Portugal).

O tratamento de dependentes é mais difícil em um regime proibicionista, que criminaliza tanto usuários quanto traficantes e vê como problema policial o que é, na verdade, questão de saúde pública. A redução de dano permite não só o atendimento mais adequado dos pacientes, como também favorece a pesquisa: de fato, os melhores estudos sobre drogas e seus efeitos surgiram nos últimos 20 anos, em boa parte devido à tolerância e regulamentação levadas a cabo em diferentes países. Somente sob tais condições será possível elevar nosso conhecimento acerca das drogas de abuso hoje ilegais ao nível daquele que acumulamos com relação ao álcool e ao tabaco.

O regime de redução de danos permite, por fim, lidar melhor com a componente social da questão, que é o fato de que na repressão às drogas o lado mais violentado é sempre o setor mais vulnerável da sociedade, em particular a população de jovens pobres, envolvida na base do tráfico por falta de opções.

A regulamentação do uso de drogas como a maconha tem-se mostrado eficaz na contenção dos piores problemas derivados da guerra às drogas em alguns países, embora traga os riscos do uso. No caso da cannabis, porém, os riscos existentes são menores que os de outras drogas de abuso legais como o álcool e o tabaco, ou ilegais como a cocaína e a heroína. Mesmo que alguns considerem inaceitável correr tais riscos, a alternativa da proibição será sempre pior, pois o mercado negro continuaria existindo, causando danos a usuários levados a adquirir substâncias de pureza desconhecida de fornecedores realmente perigosos, realimentando toda uma rede de crimes.

A insistência no jogo vencido da repressão por parte de alguns proibicionistas faz com que esta concepção adquira hoje uma tonalidade pseudocientífica: rejeita-se evidências contrárias, não aceita submeter-se a contraste e carece de mecanismo autocorretor. Seu fundamento parece ser antes de caráter doutrinário que crítico.

Este é, certamente, um debate complexo, pois se dá em diferentes níveis simultaneamente, do puramente técnico-científico ao sócio-econômico, político e mesmo antropológico. Mesmo que todos esses enfoques tivessem a mesma consistência científica – o que não têm – haverá sempre o componente ideológico-cultural - o preconceito - e qualquer tomada de decisão sempre causará controvérsia. O problema das drogas será sempre em parte ciência, em parte bom senso.

No fim das contas, quem está certo é o mestre Paulinho da Viola: “a vida (...) não é uma equação / Não tem que ser resolvida / A vida, portanto, meu caro / Não tem solução”.


Jorge A Quillfeldt
Scientific American Brasil #137
Outubro 2013

15 comentários:

Chico disse...

Acho que o Jorge sugeriu a ideia que vou explicitar: a proibição às drogas me parece muito com as violações da laicidade do Estado, onde um grupo autoritário busca impor seus valores morais e seus preconceitos à toda a sociedade sem se incomodar em validá-los por um ponto de vista mais neutro. Autoritarismo é o tom disso, porque acho que as pessoas maduras têm um direito fundamental de fazer mal a si mesmas, se quiserem, em atividades que julgam prazerosas se souberem o risco que correm. Li em algum lugar que "o desejo de salvar a humanidade é quase sempre uma máscara para o desejo de controlá-la".

Jorge Quillfeldt disse...

Perfeito, Chico. Captaste muito bem um dos argumentos.

Warlei disse...

Aterrissei aqui ao saltar do Bule Voador. Gostei muito do artigo e dos temas abordados. Já tratei portanto de incluir o blog de vocês na lista das minhas leituras habituais.

E Chico, gostei muito da citação.

Rui Campos disse...

Não seria o mesmo que afirmar, que o acesso facilitado as armas pela população, diminuiria a violência?

Chico disse...

Acho que não é a mesma coisa, Rui, porque as armas são diretamente um instrumento para violência sua finalidade é causar dano a alguém. As drogas não são diretamente fontes de violência (maconha muito menos, que é primeira candidata à liberação). Sua proibição é que é, principalmente. E drogas causam dano ao próprio usuário, em primeiro plano. É verdade que o abuso de drogas ilegais pode estender o dano às pessoas próximas, mas uma pessoa irresponsável encontra facilmente meios lícitos de prejudicar seus parentes e amigos. Uma liberdade é um preço muito alto a pagar pelos erros de alguns irresponsáveis. Por essa lógica, proibiríamos os automóveis.

Não acredito que o veto do acesso legal a armas de fogo possa causar qualquer redução significativa na criminalidade, porque, com o Paraguai aqui do lado, não vão faltar armas para bandidos que possam pagar por elas. Entretanto, a proibição reduz a chance de brigas cotidianas se transformarem em tiroteio pelas mãos de idiotas raivosos. Ainda, algumas armas legais furtadas ou roubadas ajudam a abastecer mercado do crime, então a proibição deve pelo menos obrigar os bandidos a pagarem mais por armas.

Rui Campos disse...

A violência infelizmente sempre irá existir, não há como identificar uma associação que se eliminada, poderia fazê-la arrefecer. Mesmo no caso das drogas, se a retirássemos do controle da marginalidade, a marginalidade simplesmente partiria para outras ações, como o assalto a mão armada, o que definitivamente aumentaria a violência contra as pessoas. A descriminalização não resolveria o problema dos adictos, que ao contrário, se multiplicariam pelo acesso facilitado.

Rui Campos disse...

Os Muçulmanos proíbem o consumo de álcool, me parece que eles nãos estão perdendo nada.

Chico disse...

Rui, eu até já havia pensado na possibilidade provável de ocorrerem mais assaltos e sequestros num primeiro momento de legalização de drogas, porque os bandidos não se tornarão cidadãos honestos e trabalhadores no mercado lícito só porque perderam uma fonte de renda - pelo menos não repentinamente. Mas acho que a longo prazo é compensadora a legalização.

O tráfico de drogas é responsável por pelo menos um terço dos encarceramentos, então dá para concluir que ele é responsável pela cooptação, pelo crime organizado, de muitos. A ideia é, cortando uma fonte de renda tentadora, reduzir o atrativo do mundo do crime e então favorecer a preferência do jovem por meios lícitos e pacíficos de obtenção renda. Numa das muitas comunidades dominadas pelo crime, ser traficante é sinônimo de dinheiro, poder e status, suponho.

Ainda, essa não é a única e talvez nem a mais importante faceta da legalização das drogas. Eu a considero, assim como a equiparação de direitos entre héteros e gays, um marco civilizatório de garantia das liberdades e direitos individuais. Os muçulmanos, proibindo o álcool (pelo menos onde a religião é a lei), perdem o direito de consumir álcool. Não bebo álcool nunca, mas ele parece ser tão importante para muitas pessoas que fez com que os EUA, um dos maiores combatentes históricos e presentes do tráfico de drogas, voltassem atrás na emblemática lei seca.

Rui Campos disse...

Chico, o problema é que não há possibilidade de prevermos o que acontecerá, não sou da opinião que devemos empregar métodos baseados na opinião filosófica de alguns. E o que podemos avaliar na Holanda não é muito promissor.

Rui Campos disse...

Quanto a lei seca, sua revogação não alterou os índices de criminalidade a longo prazo, pois a criminalidade se adaptou para cometer outras formas de contravenção.

Rui Campos disse...

Creio que leis mais rígidas contra os adictos poderiam resolver o problema. No Estado do Havaí, o adicto tem que se apresentar aleatoriamente para fazer exames toxicológicos na prisão, caso dê positivo, ele fica retido por um período de tempo, os próprios viciados agradecem esta postura.

Chico disse...

De fato não podemos prever o que acontecerá, porque a liberação de drogas é uma novidade na história recente da América. O problema é justamente que a via contrária, a proibição mais severa, não tem funcionado bem (cara e ineficaz, ou muito mais cara para ficar apenas um pouco mais eficaz) em lugar nenhum onde há um mínimo de liberdade civil.

O fato de não podermos prever os desdobramentos me encoraja a fazer um experimento e ver o que acontece, porque quando a situação já é muito ruim, o risco de piora é menor. O Uruguai foi nesse caminho e cogita retroceder na liberação se o resultado for ruim. Será um ótimo estudo de caso, porque é mais parecido e mais próximo de nós que a Holanda.

Aliás, eu estive em Amsterdam no ano passado e percebi a liberação mais como uma curiosidade turística desfrutada principalmente por jovens turistas ingleses do que como um problema social - o único "locão" que eu vi foi um inglês no hotel onde fiquei dizendo que não estava sentindo as suas pernas; mas caminhava sem problema. Porém, não conheci a periferia da cidade.

Rui Campos disse...

Não podemos experimentar com vidas humanas, na Holanda já começaram a rever a postura, há que se encontrar outras soluções.

Grande Abraço.

Patchwork Tatinski disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Isabela S. disse...

Hoje saiu um vídeo no youtube que imediatamente me fez lembrar desse tópico aqui do coletivo. Pela descriminalização das drogas em 24'30" e violência e neurotoxinas em 3'20" http://www.youtube.com/watch?v=EWZeV89M3MI
O vídeo inteiro tem meia hora de duração e aborda problemas sociais através do ICP-MS (!)