No lamentável episódio da destruição de um importante laboratório científico-tecnológico brasileiro, vemos o
resultado de vivermos em uma sociedade que se diz livre, mas que
na verdade está mesmo está "livre" dos conhecimentos essenciais referentes a sua própria
auto-subsistência. Somos um paradoxo!
Uma sociedade cuja mediação dos conhecimentos em grande escala está concentradíssma nas mãos da grande mídia, norteada basicamente por interesses econômicos imediatos e dedicada a enfocar somente aquilo que comove, abala, ou vende... Enfim, não é de estranhar que existam cada vez mais pessoas que, abandonadas em meio à neblina espessa da desinformação generalizada, acabam alimentando toda sorte de postura obscurantista. Ironicamente o mesmo tipo de obscurantismo que costumam criticar ou temer quando se manifesta noutras latitudes...
O problema é complexo e multicausal,
não há dúvidas, mas se deve também, em boa parte, a um fracasso da comunidade científica, que não tem
feito sua parte, qual seja: um trabalho sistemático de divulgação científica
que esclareça à população o que se está fazendo, por que
se está fazendo, e que explique por que é necessário - pelo
menos por enquanto - utilizar-se animais de experimentação nas ciências biomédicas, em
diversos estágios do desenvolvimento científico e tecnológico. Ou por que seria uma imensa irresponsabilidade abdicar, neste momento, deste instrumento epistemológico.
Na coluna Observatório da edição de fevereiro da revista Scientific American Brasil, tentei sintetizar os principais aspectos - geralmente desconhecidos e muitas vezes distorcidos - desse complexo e incendiário tema. Leia a seguir.
Na coluna Observatório da edição de fevereiro da revista Scientific American Brasil, tentei sintetizar os principais aspectos - geralmente desconhecidos e muitas vezes distorcidos - desse complexo e incendiário tema. Leia a seguir.
Uso de animais de experimentação pela ciência
Os riscos de uma sociedade desinformada sobre coisas fundamentais das quais depende
O maior desafio da popularização da ciência é explicar, para o maior número possível de leigos, como funciona o processo científico que produz novos conhecimentos acerca do mundo real, incluindo os conhecimentos biológicos e clínicos que não apenas melhoram nossa qualidade de vida, como muitas vezes representam a diferença entre a vida e a morte. Em nenhuma outra área, compreender isso é tão vital como no debate público da justificação do uso de animais na ciência, especialmente após o saqueio do Instituto Royal em outubro passado, evento cercado de mal-entendidos que a mídia não ajudou a esclarecer.
Há muita desinformação neste tema e alguns setores dos movimentos de defesa dos animais pioram a situação exagerando relatos e distorcendo fatos. Apesar do crescimento da pesquisa, a quantidade de animais utilizados vem diminuindo devido aos esforços em substituir, reduzir números e refinar procedimentos, base das chamadas políticas de bem-estar animal, implementadas por lei em todo mundo, inclusive no Brasil. Há comitês de ética monitorando o uso, e os movimentos têm assento neles. A maior parte desses animais não experimenta desconforto ou dor, e quando isso ocorre, é obrigatório o uso de medicamentos para atenuá-los. Ao contrário do que se pensa, há maior bem estar animal no ambiente científico que entre os animais criados para outros fins, como animais de corte ou mesmo de estimação (como aqueles confinados a apartamentos), práticas para as quais existem alternativas reais mas que não são igualmente questionadas, nem são alvo de ações organizadas.
Apesar dos enormes avanços da medicina atual, ainda estamos longe de saber tudo, e ainda existem doenças que não compreendemos a ponto de poder debelá-las. A garantia de que tais benefícios da ciência estejam igualmente disponíveis a todas as pessoas, é outro importante problema a ser resolvido: mas o certo é que, se não se obtiver tal conhecimento, não haverá o que distribuir.
Para dispormos de medicamentos ou procedimentos clínicos seguros e eficazes, deve haver uma série de estudos prévios. Descobrir uma substância que atua inibindo determinada doença, por exemplo, controlando um câncer in vitro, não garante que ela possa ser utilizada de forma segura em um organismo integral: o corpo humano é uma complexa rede de processos bioquímicos e fisiológicos, envolvendo vários órgãos com diferentes papéis, e uma substância “boa” aqui, pode ser “ruim” ali: nosso suposto agente anticâncer pode ser tóxico ao fígado - o que muitas vezes é letal - e acabará descartado. Mas será necessário causar a morte de uma pessoa, que poderia tentar outro tratamento possível, apenas para descobrir se o mesmo é seguro ou não?
Testes de segurança contra efeitos colaterais como toxicidade, teratogênese, mutagênese ou carcinogênese sempre precedem o exame da substância em si, e geralmente são feitos em animais, até por que a validação estatística exige estudar grande número de indivíduos. O sacrifício humano acima, portanto, não resolveria a questão, e muita gente teria de morrer à toa se não pudéssemos testar antes em animais. Felizmente tal possibilidade foi banida após os horrores perpetrados pelos “cientistas” nazistas durante a segunda guerra, resultando no chamado Código de Nuremberg, fundamento de toda pesquisa científica atual com humanos. Esta pode e deve ser feita, mas apenas com o consentimento informado de voluntários, e somente em etapas posteriores do estudo, quando há menos risco de danos irreversíveis.
No presente estágio do desenvolvimento científico, não existem alternativas capazes de substituir o uso de animais, embora a busca continue. Cultura de células, por exemplo, além de extraídas de seres vivos, não permitem prever o que acontecerá com determinado fármaco ou procedimento quando aplicado num animal inteiro, com fígado e rins que os processem e modifiquem. Modelos em computador, por sua vez, incorporam apenas conhecimentos já estabelecidos, e o objetivo da pesquisa científica é acessar o que ainda é desconhecido.
Assim, testes em animais seguem sendo necessários, sendo, de fato, a alternativa aos testes em humanos.
Claro que provar ser seguro em animais não garante 100% que também o seja para nós: por isso, testes de segurança também são feitos em humanos, mas somente depois de confirmado um razoável grau de segurança. Tais testes funcionam e são úteis por que, apesar de sermos “tão diferentes”, somos fundamentalmente muito parecidos: uma vez que toda vida na Terra evoluiu a partir de ancestrais comuns, todos compartilhamos, em boa parte, o metabolismo celular básico, e, entre mamíferos, também nossa fisiologia de órgãos e sistemas.
Devemos aos animais de experimentação as muitas vidas que salvamos ou ajudamos a melhorar graças às vacinas, antibióticos, hormônios (como insulina) e medicamentos como analgésicos e antiinflamatórios, além de procedimentos como transfusão, diálise, cirurgias, transplantes, métodos diagnósticos e outros. Tudo isso é fruto de testes em animais. Mais: esses conhecimentos também estão na base de toda a medicina veterinária de hoje, fundamental para o bem estar animal, inclusive os de estimação.
O uso de animais pela ciência é uma complexa questão ética que merece debate. E ele começa ponderando os vários fatores: o que é pior para mais gente (e outros animais) no longo prazo, obter ou não obter estes conhecimentos?
Jorge A Quillfeldt - Porto Alegre, 20 de dezembro de 2013
2 comentários:
Concordo com o texto do Jorge e ele tocou num dos pontos importantes: a ciência tem seus danos colaterais, mas quando feita com responsabilidades se reverte em benefício de humanos e animais não-humanos. Ou seja, a longo prazo, por métricas objetivas e pensamento pragmático (dosado com um pouco de sensibilidade, claro), vale a pena.
Entretanto há duas coisas de que não gostei. A tirinha ilustrativa parece endossar, querendo ou não, a postura de um tipo de gente bem desagradável e improdutiva: aquele não abraça nenhuma causa (exceto na retórica inócua) mas critica os que agem em favor de uma causa porque julga esta menos prioritária. Fulano resgata animais de estimação abandonados, mas é um bobão porque há mendigos sem teto. Aí fulano ajuda os mendigos adultos, mas continua um bobão porque há crianças abandonadas. Fulano então ajuda crianças brasileiras, mas é um insensível porque as crianças africanas estão muito pior. E isso não termina. Eu prefiro outra linha de pensamento: se o fulano faz algo de bom por qualquer criatura em sofrimento, está fazendo algo bom e pode continuar assim e ponto final. Outro problema da tirinha é insinuar que os humanos estão menos bem atendidos que os animais de estimação. Além do status legal privilegiado dos humanos e da estrutura estatal que os atende (mal mas atende), posso contestar essa ideia com um exemplo infelizmente corriqueiro. Se eu encontrar um bebê humano abandonado, eu certamente o socorreria, porque, mesmo se eu não estivesse disposto a me responsabilizar por ele, eu poderia entregá-lo a qualquer hospital ou delegacia e sair sem nenhuma responsabilidade, sabendo que ficará minimamente bem cuidado. Mas se eu encontrar um animal abandonado para morrer, tenho um incentivo enorme para virar as costas como a maioria faz, porque acolhê-lo implicaria uma responsabilidade e um custo grandes. Entretanto, minha dificuldade de fazer isso me deixou com nove gatos e três cães (não estou reclamando, porque adoro eles), quase todos encontrados muito mal de saúde e agora perfeitamente reabilitados.
(continua)
Há também um falta importante no texto que limita sua capacidade de persuasão entre os defensores mais extremados dos animais não-humanos. Estes grupos frequentemente não compartilham de uma das premissas do texto, a de que os seres humanos, sua fome de conhecimento (de alguns) e suas nobres conquistas coletivas são em algumas situações mais importantes do que o bem-estar animal. Acho que nesse ponto, abrindo mão do antropocentrismo (especismo), podemos dar crédito aos "animalistas". Mesmo se a escravidão, genocídio ou tortura trouxessem benefícios objetivos que não poderiam ser obtidos de outra forma, não seriam aceitáveis (pelo menos hoje, pelo menos para a maioria). Porém, estas violações já foram artifícios legítimos na manutenção da civilização e só pareciam razoáveis pela noção de diferença entre indivíduos, seja geográfica, cultural ou étnica. A intensidade da percepção de diferença que é necessária à tolerância da dominação de um grupo (espécie) sobre outro é arbitrária e variável no tempo. Alguns animais não-humanos são muito inteligentes e claramente têm sentimentos de toda sorte. Será que podemos dominar todos os mamíferos ou devemos excetuar os golfinhos, ou talvez os primatas mais sofisticados?
Já pensei um pouco sobre isso, dividido entre a simpatia pela causa e o apreço pela ciência, e acho que podemos recorrer a algo mais objetivo em defesa da prioridade que damos aos humanos. Os humanos têm as mentes mais sofisticadas entre os animais e por isso devem ser as criaturas capazes de experimentar as maiores gama e profundidade de sofrimentos, e por isso deveriam ser mais protegidos, também pelos benefícios da ciência, apesar de seus efeitos colaterais. Não creio que um minhoca possa experimentar um medo paralisante, a solidão, o desamparo, o sentimento de inadequação e de finitude, de desespero. Por outro lado, não tenho dúvida de que cães e gatos sitam grande parte disso. Mas ainda acho que os seres humanos são ainda mais mentalmente frágeis e merecem um tratamento pelo menos um pouquinho especial.
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