terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Sobre a fatalidade e "evitabilidade"

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(mensagem escrita em 27jan2013, um dia triste demais,
e que só agora consegui editar e publicar)


Hoje resisto à idéia de falar de ciência ou qualquer assunto relacionado. Hoje é um dia triste demais para discutirmos serenamente qualquer assunto. Hoje é um dia de perplexidade, de revolta, de impotência e de luto. Hoje 231 jovens, quase crianças, perderam a vida quando a celebravam. Hoje centenas de famílias lutam em vão tentando compreender o incompreensível - a supressão súbita do ente amado, sua remoção do convívio material. A causa insólita aguarda maiores detalhes, mas o essencial é conhecido de todos: eles estavam dentro de uma armadilha.

Que por sorte ainda não havia cobrado vidas. Que por azar cobrou tantas nesta madrugada em Santa Maria da Boca do Monte. Que por sorte não cobra mais vidas em tantas boates, bares e casas de espetáculos pelo Brasil e o mundo afora, onde as mesmas condições se repetem sinistramente, mas com a sorte de não “terem o azar” de... viver uma tragédia.

Nesse jogo de empurra entre a sorte e o azar, brinca-se com as probabilidades, sempre minimizando-as, como se probabilidades menores fossem sinônimo de... impossibilidade. A incerteza parindo a certeza! Extraem a segurança de um lugar impossível: a baixa frequência. Probabilidades não são nem nunca poderão ser certezas. Mas jogar com elas, “com certeza” é uma má idéia.

Nossa civilização, tão civilizada, lida mal com as probabilidades. O Brasil, então, desdenha-as com elevada... frequência. Contentamo-nos em flertar com a tragédia ao não antecipá-la com seriedade, ao não agir preventivamente. Ação que tem custos, é claro. Mas cuja ausência pode levar a resultados fatais, irreversíveis e imponderáveis, como a perda de vidas humanas.

Intragáveis e revoltantes como a perda desnecessária e evitável de vidas humanas.

A lição não-aprendida da boate argentina Cromagnón em 2004 , aqui do lado, volta para nos assombrar, agora sem legendas em português. Quanto vale uma vida? Quanto valem 231? Vários fatores concorreram para o desenlace mórbido desta madrugada, entre eles a velha ambição do lucro, que sempre conduz à minimização dos “gastos” em segurança – aliás, nunca vistos como “investimento”. Afinal, esta é a regra do sistema sócio-econômico em que vivemos, cantada em prosa e verso em toda urbe. Quando a conta chega - como chegou agora - podem até chorar lágrimas de crocodilo, mas as causas estão lá, na economia de gastos, na ambição desmedida, no desprezo ao que a ciência já sabe e a lei já obriga. No desprezo à vida humana.

O incêndio na Boate Kiss em Santa Maria não foi uma “fatalidade”, muito menos fruto do “azar”. Era uma possibilidade clara conhecida de muitos. Para alguns, uma mera questão de tempo. Se todos os cuidados e investimentos tivessem sido realizados, inclusive com rigor acima do que nossa limitada e leniente legislação permite – o que seria recomendável caso fôssemos mais sérios - e ainda assim uma sucessão imprevista de acasos fatídicos tivesse acontecido, bem, neste caso poderíamos falar em “fatalidade”. Mas o “azar” não explica um ambiente que alegava ter capacidade de até 1.000 pessoas ter uma única saída “de emergência”, a falha nos extintores na hora “h”, o emprego descuidado de fogos de artifício em ambiente fechado (que deveria ser tão proibido quanto o fumo!), o alvará de incêndio vencido há meses, e pior, o alvará de incêndio aprovado anteriormente para aquele prédio naquelas condições (sem mais saídas de emergência), a ausência de uma brigada de incêndio devidamente treinada, a ausência de um sistema de alarme eficiente que transforme os seguranças em brigada de incêndio em vez de carrascos desalmados – ainda que alguns poderiam tê-lo sido de qualquer modo.

Esta tragédia foi, portanto, fruto de um somatório de equívocos, descuidos, irresponsabilidades e más-intenções de toda sorte, e os co-responsáveis são muitos, mas certamente nem todos serão punidos: algumas simplificações concentuais e - pronto! - teremos um ou dois bodes expiatórios – também culpados, mas certamente não os únicos. Já há movimentos para apontar alguns nomes. Só alguns, os mais óbvios. Mas não estarão pagando todos os responsáveis. Escaparão ilesos os fiscais do serviço público, as autoridades concedentes de alvarás, os legisladores, e toda uma cadeia de descaso e/ou cumplicidade que já estamos acostumados a aceitar.

“Evitável “ é a única palavra que ainda ecoa nos escombros enegrecidos da boate santamariense.

A natureza do fogo e a dinâmica dos incêndios NÃO SÃO um mistério intangível: trata-se de uma ciência bastante desenvolvida. Sabemos muito sobre como prevenir suas consequências funestas, mas os “investimentos” (ou “custos”) são elevados. São, é claro, proporcionais ao respeito pela vida humana. Às vezes pegamo-nos, brasileiros viajando ao exterior, ironizando exemplos de uso obsessivo de recursos anti-incêndio em países do primeiro mundo, e até rimos daquilo que nos parece um “excesso”. Diante da tragédia, porém, todos concordam que não há excessos que sejam mais “caros” que a perda evitável de vidas humanas. Mas é tudo conversa passageira. No Brasil, algo só deixa de ser “excesso” quando muitos morrem ao mesmo tempo. Fogo brando não cozinha a cabeça dura de administrador tupiniquim. Se seguíssemos os conhecimentos que temos rigorosamente, antecipando as possibilidades e efetivamente cobrando atitudes, não estaríamos chorando uma tragédia evitável.

O massacre de 231 jovens, que mal começaram a viver suas vidas, foi, enfim, fruto do desprezo profundo pela vida humana, que em nossa sociedade é fruto de um pacto tácito de mútua leniência. E que se expressa de diferentes formas, indo desde o caráter classista da repercussão midiática – seria igual a comoção geral se fosse um incêndio com 231 vítimas em uma favela, por exemplo? – até a conivência com o pseudo-mistério das probabilidades, aqui antes um álibi para economizar dinheiro que um fator decisivo na tomada de decisões vitais.

Mas isso tudo é hoje, ainda no calor do incêndio, no desespero da notícia, na dor dos velórios. Amanhã será um outro dia, e poderemos recomeçar a reconstruir nossas fantasias coletivas de segurança, e até achar que, do jeito que estamos fazendo... está bom.


Para saber mais, que nunca é demais:
  • http://pt.wikipedia.org/wiki/Boate_Kiss
  • http://www.lmc.ep.usp.br/grupos/gsi/wp-content/artigos/educacao/SCI.pdf

2 comentários:

Chico disse...

O texto do Jorge não toca diretamente no detalhe que mais chamou minha atenção, que é a existência, num ambiente fechado, de materiais rapidamente inflamáveis e liberadores de vapores tóxicos. Me parece óbvia a falha, mas não estou seguro de que a obviedade não é produto da facilidade de fazer críticas pós-tragédia. Entretanto, embora eu talvez não fosse capaz de antever o risco, concordo com o Jorge em que essa competência tem que ser esperada e cobrada dos agentes públicos fiscalizadores. Engrosso, então, o coro dos que apontam negligência do Estado, até porque em segurança é melhor pecar pelo excesso. Entretanto, não podemos contar com a tutela estatal ao ponto de sermos dependentes dela. Os administradores e operadores do lugar - e todo mundo, na verdade - então têm culpa a dividir com as autoridades.

Quanto ao classismo apontado pelo Jorge, não cometerei a gafe de minimizá-lo, mas acho que ele se mistura e se confunde com uma outra perspectiva que multiplica o sentimento de perda pela a contribuição esperada das vidas perdidas à sociedade e pelo gozo que as vítimas ainda obteriam da vida que, ao contrário, lhes foi curta. Assim como se antevê para moradores da favela uma vida com maiores restrições e riscos do que a vida de universitários, a comoção também seria bem menor se a tragédia fosse num lar de idosos (por mais ricos que fossem), pois para eles também não se antevê um restante de vida de grande qualidade e extensão. Meu sentimento de perda que se traduz no primeiro pensamento que tive ao saber do ocorrido na boate Kiss: lamentável... gente tão jovem e com tantas oportunidades.

Ney Lemke disse...

Eu escrevi um texto para o facebook, que incluo para ajudar a entender essa situação

Ainda sobre SM...
A coisa que mais me impressionou no domingo de manha, foi o folheto que os alunos da UFSM usaram para anunciar a festa. Ele era basicamente o mesmo de muitos que circulam em Botucatu. A festa com um nome de trocadilho, uma banda desconhecida tocando algo na linha axe-sertanejo-tradicionalista e organizada por uma comissão de formatura. Essas festas ocorrem a uma incrivel taxa no Brasil, centenas em cada final de semana.
O que comprova sua escala industrial de produção.

Elas seguem uma estrategia bastante inteligente, as comissoes de formatura "estabelecem" parcerias com os donos da casa noturna, que desfruta de um pequeno exercito de jovens que vão graciosamente se ocuparem durante várias semanas de lotarem a casa e em troca vão ficar com parte do lucro. Esse lucro vai reingressar no sistema uma vez mais, pois em geral é usado para pagar festas de formatura, que vão beneficiar a mesmissima industria.

As festas apesar da escala industrial e de sua super-lotação ocorrem em ambientes que não foram pensados para garantir segurança. E com mais frequência do que se pensa resultam em tragédias, pois é prática comum o consumo de alcool acompanhado de direção. Que vitima todos os finais de semana, jovens pelo Brasil afora, mas como as mortes ocorrem em pequena escala, a nossa indignação se mantém em estado de repouso. O uso de fogos de artíficio, instalação elétricas precárias e outras manifestações de insanidade são a regra e não a excessão.

Assim essa ocorrência é, e aqui nos obrigamos a usar de um chavão por simples falta de opção literária, a cronica de uma morte anunciada. Culpa nossa que será expiada com o linchamento público dos culpados de sempre, o técnico da banda, o segurança que barrou a saída, o gaiteiro enlouquecido, e uma velha conhecida nossa: a fatalidade.

O último elemento dessa estranha situação irá se concretizar nos próximos anos, a cada festa de formatura. A alegria dos jovens profissionais vai ter que conviver com o silêncio, com a ausência, com as consequencias. Talvez essa seja a minha receita (pelo menos a minha de docente) para impedir que esses acidentes sigam ocorrendo, ensinar aos jovens que existem consequencias e que nem sempre é possível errar duas vezes.