sexta-feira, 9 de março de 2012

Por que não sou mais um cético ? (Stephen Bond)

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Ocasionalmente, eu tento provocar o saudável debate acerca das premissas da chamada "comunidade cética" - supondo que seja apenas uma e, também, homogênea (o que não creio) - como na questão de onde estão os neoateus progressistas. Ou quando questiono (a pobreza d)os métodos analíticos geralmente empregados, como no debate sobre a argumentação teísta de Plantinga. Esse é um tema que realmente me assombra, a constatação do reacionarismo político entranhado no discurso e nas práticas de tantos ditos "céticos". No extremo, espanta-me quando um Richard Dawkins descamba para a pregação de puro e simples ódio, como faz muitas vezes. Quero entender por quê isso, e destilar possíveis regras, pois não posso crer que todos os seus admiradores, por exemplo, pensem desta forma destrutiva (para ficar no exemplo da sua pregação anti-islâmica). Pois nas últimas semanas o blogue-irmão Bule Voador está publicando, em partes, uma excelente tradução de uma magnífica reflexão do irlandês Stephen Bond, que mantém um excelente quase-blogue chamado Stephensplatz. O artigo intitula-se "Por que não sou mais um cético". O original desse texto, na íntegra, está aqui, mas fomos autorizados a reproduzir os trechos já disponíveis (4 das 5 partes) a seguir, na tradução primorosa de Alê GM, colaborador do Bule. É um texto sensacional. O autor diz muitas verdades e disseca outras com clareza extraordinária, retirando o véu de intocabilidade que também é um mecanismo de (auto)defesa que todo militante do pensamento crítico deveria estar preparado & disposto a levantar, nolens volens.

Leiam e opinem (atenção: postagem longa).

Por que não sou mais um Cético

Fonte: Stephenplatz

Autor: Stephen Bond

Tradução: Alê GM (no Bule Voador)

[Comentário do tradutor: É importante deixar claro que nem tudo o que é dito neste texto está de acordo com as opiniões do tradutor, dos editores do Bule Voador e da LiHS como instituição. Mas trata-se de uma (auto)crítica bem-vinda, e talvez necessária, à comunidade cética, embora em muitos aspectos ela faça pouco sentido fora do contexto original - isto é, a comunidade cética dos EUA, não do Brasil. De qualquer forma, manter-se aberto a críticas e ponderar sobre elas é essencial em um ambiente de livre debate. O texto será postado em cinco partes, às sextas-feiras.]

REJEITANDO O CETICISMO

Essa não é uma história de como eu encontrei Jesus, de como a acupuntura curou minhas hemorroidas ou de como meus abdutores alienígenas revelaram a verdade derradeira sobre o 11 de setembro. Eu ainda não tenho fé em nada sobrenatural, místico, psíquico ou espiritual. Eu ainda considero o método científico a melhor maneira de criar um modelo da realidade e a razão a melhor maneira de descobrir a verdade. Eu não sou mais um cético, mas nenhuma das minhas crenças centrais mudou.

O que mudou é que vim a rejeitar o ceticismo como identidade. Identidades compartilhadas como o ceticismo são, na melhor das hipóteses, problemáticas por inúmeras razões, mas posso aceita-las como maneira de empoderar e dar voz àqueles a quem os direitos políticos são negados. E, de fato, é assim que céticos gostam de retratar a si mesmos: uma minoria preparada para o combate erguendo-se em defesa da ciência, o reduto solitário da razão em um mundo irracional, a vanguarda contra a velha ordem de ignorância e superstição. Como um cético, eu estava feliz em aceitar esta narrativa e acreditar que eu estava fortalecendo as barricadas.

No entanto, esta é uma narrativa que corresponde mal à realidade. No mundo moderno, a ciência, a tecnologia e a razão são centrais e vitais, e isso é largamente reconhecido, inclusive nos níveis mais altos. Em qualquer grande decisão política, o tecnocrata fala mais alto do que o bispo, ou, aliás, que qualquer outra pessoa. Claro, Bush e Blair eram notórios “crentelhos”, mas se você seriamente acha que, digamos, a segunda Guerra do Golfo tenha sido decisão apenas deles, ou de que “assim quer Deus” convenceria qualquer pessoa que eles tivessem de convencer, então você está aceitando uma caricatura da história. Tais decisão são sempre calculadas, refletidas e apoiadas por dúzias de experts científicos acomodados.

A ciência tem alta consideração na mídia e um grupo lobista poderoso: em meio a uma recessão global e grandes cortes governamentais, o financiamento científico geralmente se manteve ou até mesmo aumentou. Corporações de tecnologia de ponta tem influência e riqueza massivas, e seus produtos são onipresentes e cada vez mais vistos como desejáveis. De fato, o mundo hoje seria inimaginável sem os produtos da ciência e da tecnologia, os quais infiltraram-se em quase todo processo econômico, político e social. Vivemos em um mundo criado pela, e cada vez mais dependente da, ciência, tecnologia e razão, no qual cientistas e engenheiros são uma elite estimada e indispensável.

Isso mesmo: os nerds venceram, décadas atrás, e estão agora tão perfeitamente estabelecidos quanto qualquer outra parte do status quo. E enquanto nerds são uma elite relativamente nova, eles são impressionantemente iguais à antiga: ricos, brancos, do sexo masculino e desesperados para se agarrar àquilo que tem. E vim a me dar conta de que o ceticismo, em suas mãos, é apenas mais uma ferramenta para assegurar e avançar sua posição privilegiada, e pisotear seus inferiores. Como um cético, eu não estava levantando as barricadas revolucionárias: em vez disso, eu estava torcendo pela cavalaria do Czar.

A RAZÃO NÃO É APENAS PARA UMA ELITE INTELECTUAL

É claro, não há nada inerentemente elitista na razão ou no método científico. Pensamento crítico envolve aplicar algumas regras simples que são acessíveis a todos, ao menos em teoria. E realmente, muitas pessoas tornam-se céticas com a melhor das intenções: para espalhar a palavra da razão e do pensamento crítico, para armar as massas em vez de derruba-las. Ao chamar a atenção para o charlatanismo e enganação onde quer que ocorram, seu objetivo é proteger os vulneráveis dos enganadores, charlatães, políticos e sacerdotes que os exploram.

Mas tal é o caráter do ceticismo que as boas intenções rapidamente atolam-se nas más. Veja além das lágrimas de crocodilo em qualquer fórum online de ceticismo e notará rapidamente que a maior parte dos visitantes não é atraída para lá por uma preocupação pelas vítimas da irracionalidade, mas por menosprezo. Estão lá para rir dos idiotas. Não alegarei inocência aqui: muitas vezes participei das risadas, pelo menos vicariamente; rir de idiotas pode ser divertido. Mas no contexto de um site de céticos, a risada toma um tom nada saudável de bullying. Nunca é agradável ver um grupo de estudantes universitários unindo-se para rir de pessoas que tiveram suas vantagens negadas em suas vidas, principalmente quando para alguns deles trata-se de um hobby de tempo integral. É uma luta injusta entre recursos desiguais, e muito poucos céticos se importam com essa desigualdade ou querem fazer algo a respeito disso.

Aliás, estou convencido de que a maioria deles preferiria manter os recursos desiguais. O cético médio não tem tempo para espalhar a palavra da razão aos que deixam a desejar em termos de educação ou intelecto. Sua razão superior é o que o separa dos patetas ao seu redor, e ele não tem nenhum interesse em fechar esse vão. Para ele, o apelo da panelinha cética é sua exclusividade. É um refúgio das massas estúpidas, e um marcador de seus próprios privilégios especiais. É a Mensa com uma nova marca.

Cerca de dez anos atrás houve um movimento com vida curta que pretendia rotular os céticos como “brights” (brilhantes). Esta proposta foi largamente rejeitada pela comunidade, talvez porque revelasse demais da mentalidade dos céticos. Muitos deles de fato vêem a si mesmos como “brilhantes” em um mundo de “turvos”. E em vez de iluminar o mundo, eles preferem unir-se em fóruns céticos e tentar brilhar mais que os outros.

Fóruns online, de qualquer tema, podem ser lugares proibidos para novatos; com o tempo a maioria deles tende a se tornar dominada por pequenos grupos de sabe-tudos irritadiços que estampam suas personalidades no modo de proceder. Mas fóruns céticos são unicamente projetados para esse tipo de pessoa. Um fórum cético valoriza (e em alguns casos, transforma em fetiche) ‘nerdice’ competitiva, esperteza gratuita, demonstrações machonas de erudição. É uma reunião de homens durões da racionalidade, batendo em seus peitos, exibindo sua lógica muscular, olhando de soslaio para comparar seu dote cético com o do cara ao lado, farejando o ar em busca de sinais de fraqueza. Juntos, criam uma atmosfera opressiva de vestiário suado que ajuda a manter setores demográficos indesejáveis de fora.


[2 de 5]

SEXISTAS MALDITOS

Um setor demográfico com o qual os céticos ficam particularmente desconfortáveis é a fêmea da espécie. É um fato cada vez mais constatado que a comunidade cética está repleta de sexismo — especialmente depois da controvérsia do “cara do elevador”, sobre a qual falarei mais adiante. Mulheres são uma pequena minoria no mundo cético, e as poucas que se envolvem tem bosta atirada sobre elas constantemente por seus colegas céticos. Todo dia elas sofrem toda a gama de atitudes desde escárnio até olhadas maliciosas.

O ceticismo, é claro, é apenas um dos muitos interesses online que atraem sexistas mal-enrustidos. Mas a atração particular do ceticismo é também seu problema em particular: ele permite que o sexista disfarce seu preconceito como racionalidade e “bom senso”. Você pode encontrar caras assim facilmente em fóruns céticos: a palavra “feminismo” faz com que rastejem para fora, como lesmas depois de um aguaceiro. Para eles, o feminismo é uma disciplina não científica (mas como poderia ser de outra forma?), tão sem sentido quanto astrologia ou Catolicismo Romano, e está maduro e perfeito para ser refutado. Eles concordam com a liberação feminina, dentro do bom-senso; mas agora já foi longe demais, e a mão firme da razão deve segurar as rédeas. A razão, de maneira bem estranha, parece nunca perturbar seu próprio agarramento ao poder. Ela está sempre do lado do patriarcado.

Para ser justo, tais sexistas descarados são uma minoria em fóruns céticos, mas para ser ainda mais justo, a atitude geral para com as mulheres não é exatamente saudável. Mulheres estão presentes em fóruns céticos de forma muito parecida com como as mulheres estavam presentes nos episódios mais antigos de Jornada nas Estrelas: enquanto os homens fazem uma variedade de papéis, as mulheres são sempre os personagens sexuais. Seu único atributo é ser sexualizada e objetificada. Inteligência em um cético homem é pouco notada; inteligência em uma mulher cética é excitante. Quando um cientista homem sabe sobre ciência, é algo esperado e passa sem comentários; quando uma mulher cientista sabe sobre ciência, ela é gostosa! E vai ser praticamente impossível vê-la sob a multidão de nerds tentando ‘fapar‘ sobre seu jaleco.

Muitas vezes o nerd cético que tenta exibir suas credenciais de cordialidade para com mulheres acaba se revelando apenas um sexista nojento. Ele é totalmente a favor das mulheres, contanto que elas satisfaçam seu próprio ideal de o que uma mulher deve ser. Esse tipo de atitude é tipificada pelo webcomic voltado para céticos xkcd. “Eu gosto de garotas nerds”, diz Randall Munroe – mas ele tolera as outras? Eu procurei entre centenas de suas tirinhas de homens-de-palito, deus me ajude, e onde seus personagens femininos eram caracterizados, elas inevitavelmente se conformam ao mesmo ideal construído – nerd, desajeitada, sabe-tudo, engraçadinha – um ideal em grande parte construído em torno do próprio Randall, ou sua própria auto-imagem. Este ideal feminino diz muito mais sobre sua vaidade do que sobre seu feminismo; e é um ideal compartilhado por muitos na comunidade cética.

Idealizar as mulheres não é o mesmo que feminismo – na verdade, normalmente é o oposto. Ao longo da história, o conceito da “mulher perfeita” tem sido muito mais uma forma dos homens forçarem suas impressões nas mulheres, restringindo-as, do que de dar-lhes uma voz. A Virgem Maria não era uma figura progressista, e nem a Joana D’Arc, e nem a garota cética dos seus sonhos, caras, quem quer que ela seja. Embrulhar as mulheres em suas pequenas fantasias não é muito diferente de embrulha-las em uma burca.

ISLAMOFOBIA

Apenas uma minoria de mulheres muçulmanas usam burcas; algumas usam-nas por escolha, como uma afirmação de sua identidade cultural. Algumas o fazem apenas pela insistência dos homens em sua família. Alguns desses homens são sexistas tradicionais do tipo que você pode encontrar na comunidade cética; muitos outros são guiados pelo mesmo tipo de cavalheirismo torto que faz nerds idealizarem garotas desajeitas da ciência.

Eu não quero encher minha própria bola indevidamente, mas acredito que o parágrafo acima seja uma afirmação mais bem medida e factual sobre o Islã do que as que você encontrará em todo o trabalho do Prof. Richard Dawkins ou de seus co-pensadores. De fato, na comunidade cética é muito mais comum encontrar afirmações insinuando que todos os muçulmanos sejam terroristas suicidas que odeiam mulheres, odeiam a liberdade, cortadores de clitóris, e ainda mais, encontrar essas afirmações sendo aceitas sem comentário. Sob o disfarce do ateísmo, progressismo e racionalidade, a feia islamofobia prospera.

Um exemplo recente chocante aconteceu depois da chamada controvérsia do cara do elevador. Em uma conferência cética em Dublin, a proeminente Rebecca Watson (também conhecida como “Skepchick“) recebeu uma proposta de algum doido em um elevador às 4 da manhã. Ela educadamente recusou e depois fez um vídeo sobre o incidente dizendo que, caras, cantadas de elevador não são uma ideia muito boa. Justo, você pode pensar. Mas previsivelmente para a comunidade cética, suas palavras incitaram a fúria de um grande número de sexistas, inclusive do Prof. Richard Dawkins, que não conseguiu resistir a arrastar para o campo um de seus outros preconceitos. Vale a pena citar suas palavras na íntegra:

Querida Muçulima,

Pare de choramingar, tá bom? Sim, sim, eu sei que seus genitais foram mutilados com uma lâmina, e… bocejo… não me diga de novo, eu sei que não permitem que você dirija um carro, e você não pode sair de casa sem um parente homem, e seu marido tem permissão para bater em você, e você será apedrejada até a morte se cometer adultério. Mas pare de choramingar, tá bom? Pense no que suas irmãs americanas sofredoras tem de aguentar.

Essa semana mesmo eu fiquei sabendo de uma, ela chama a si mesma de “Skepchick“, e você sabe o que aconteceu com ela? Um homem em um elevador de hotel a convidou para tomar café em seu quarto. Não é exagero meu. Ele convidou mesmo. Ele a convidou para tomar café em seu quarto. Claro que ela disse não, e claro que ele não encostou nem um dedo nela, mas mesmo assim…

E você, Muçulima, acha que tem misoginia pra reclamar! Pelo amor de deus, cresça, ou pelo menos deixe de ser tão sensível.

Esse comentário não foi feito por um trollzinho qualquer no Youtube, ou por um membro declarado do BNP (British National Party), ou mesmo por um impostor malicioso; como foi posteriormente confirmado por PZ Myers, essas são as palavras do próprio Richard Dawkins. O Richard Dawkins, autor de “Desvendando o arco-íris” e “O relojoeiro cego”, professor emérito pelo entendimento público da ciência na Universidade de Oxford, o cético-mor dos céticos. E suas palavras são discurso de ódio, puro e simples.

Como é típico de fomentadores de ódio, Dawkins toma cuidado para não dar nome a seu alvo diretamente: em vez disso, ele trabalha com insinuação — embora, dito isso, chamar a vítima de “Muçulima” [Muslima no original] seja particularmente grosseiro. Como também é típico de fomentadores de ódio, ele constrói para nós uma imagem generalizada de um número de exemplos isolados e não relacionados. Mutilação genital feminina, por exemplo, não tem nada a ver com o Islã, como Dawkins provavelmente sabe, apesar de ele estar bem satisfeito em enfiar junto e sugerir que seja endêmico. O efeito de sua arenga é retratar o Islã como um tipo de tortura feminina institucionalizada da qual todos os homens muçulmanos são cúmplices, portando caluniando meio bilhão de pessoas, e avançando os objetivos da Fox News e da “guerra contra o terror” (a propósito, a ironia do primeiro parágrafo não disfarça a falta de compaixão de Dawkins pela condição da “Muçulima”. Procurando por um exemplo de lágrimas de crocodilo cético? Não posso pensar em nenhum melhor).

Para seu crédito, muitos céticos renomados (incluindo PZ Myers e Phil Plait) chamaram a atenção de Dawkins para seu óbvio sexismo; mas até onde sei – e corrija-me se estiver errado – nenhum deles disse uma palavra sobre sua islamofobia. Parece que esse lixo racista é aceito dentro da comunidade cética como evidentemente é dentro das salas comuns de Oxbridge.

E lixo racista é o que isso é. Alguns apologistas de Dawkins alegam que ele não é islamofóbico, mas simplesmente um ateu militante combatendo as maldades da religião onde quer que ele as veja; mas Dawkins vê suas maldades de maneira bastante seletiva. De fato, ele é marcadamente complacente com a fé de sua infância, a boa e velha Igreja da Inglaterra – tanto que suspeito que “Deus, uma ilusão”, em si, não seja sua principal preocupação. De seus escritos, imagino que Dawkins ficaria satisfeito em viver em um mundo onde gentis vicários anglicanos presidissem sobre suas congregações civilizadas e entediadas nos vales e montes da Inglaterra, enquanto o Império Britânico faz seu trabalho sujo em outras partes, em lugares como Quênia, Índia e West Cork. Ele salva sua verdadeira ira para os credos dos nativos desordeiros – todos aqueles muçulmanos e católicos e tribalistas nojentos que não sabem o seu lugar. Não que ele queira se associar com o derramamento de sangue feito em seu nome. Como muitos progressistas gentis, ele se declara hipocritamente contra as guerras no Iraque e Afeganistão, enquanto continua a envenenar a atmosfera em seu favor com esse discurso de ódio. Ao menos seu camarada Christopher Hitchens, bronco como ele é, foi consistente o suficiente para seguir sua visão a suas conclusões lógicas e repugnantes. Por outro lado, o Hitchens tem mais consciência do que o ceticismo é.

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CETICISMO É NEOLIBERALISMO

Como já vimos, o ceticismo é uma igreja grande e variada – que dá boas-vindas, entre outras coisas, a visões de mundo elitistas, sexistas e racistas. Uma coisa que todos os céticos tem em comum, entretanto, é que eles apoiam liberdades que eles acreditam existirem na civilização ocidental atual, e acham que essas liberdades deveriam espalhar-se pelo mundo todo. Em outras palavras, todos os céticos são neoliberais. Eles podem discordar, como Hitchens e Dawkins, sobre qual é a estratégia correta para vencer a mais nova cruzada neoliberal, mas em geral pode-se confiar que a apoiarão, ao menos em princípio.

Todos os céticos são neoliberais: se você não se considera um neoliberal, você não deveria se considerar um cético. Eu entendo que isso pode parecer uma alegação controversa, então por favor permita-me explicar.

Céticos são pessoas que acreditam na primazia do método científico como fonte de conhecimento. Para um cético, todo conhecimento derivado através de outros métodos ou é inferior ou é espúrio. Céticos extremos como Dawkins chegam perto de alegar que o método científico é a única fonte verdadeira de conhecimento, e que o que é no momento conhecimento não-científico – como moral e cultura – eventualmente tornar-se-á mais rigorosa e corretamente estabelecido através do método científico.

O método científico geralmente envolve a observação da realidade, hipóteses baseadas em observação e teste experimental de hipóteses. Todos estes elementos, particularmente o primeiro e o terceiro, envolvem o uso da percepção humana – que, quando constrói modelos da realidade objetiva, pode introduzir um elemento perigosamente subjetivo.

Percebemos o mundo através de metáforas: modelos mentais que nos ajudam a interpretar e compreender nossas percepções cruas e construir nossas observações. Algumas dessas metáforas são herdadas e provavelmente imutáveis sem algum tipo de engenharia biológica: uma parede de pedra é em sua maior parte espaço vazio, mas evoluímos para vê-la como uma massa sólida. Outras metáforas são aprendidas e sujeitas a mudanças ou a serem transmitidas para outros no ambiente. Por exemplo, você pode considerar que eventos tenham um propósito, ou você pode considerar que eventos tenham uma causa; estas são metáforas muito diferentes, que levam a percepções muito diferentes da realidade. A existência de tais metáforas é incontroversa, aliás; isso não é qualquer bobagem. Até mesmo Dawkins as reconhece: ele as chama de memes.

Nossas observações são condicionadas pelas metáforas a que fomos expostos culturalmente, socialmente e na história de nossa sociedade. É a isso que Newton se referia quando disse que estava de pé sobre os ombros de gigantes: ele estava reconhecendo o acúmulo de metáforas que ajudaram-no a fazer suas descobertas. Algumas destas metáforas foram fornecidas por cientistas, como Copérnico, Galileu e Kepler. Outras foram fornecidas por filósofos, como Descartes e Francis Bacon, que ajudaram a transformar a maneira como as pessoas viam o mundo, introduzindo uma visão mecanicista e empírica. Outras metáforas ainda vinham das transformações culturais, políticas, sociais, econômicas e até religiosas pelas quais a Europa havia passado nos duzentos anos anteriores. O declínio do feudalismo, a emergência de uma classe-média forte, o humanismo renascentista, a reforma protestante, todas essas coisas tiveram um efeito profundo na maneira com que os europeus da época de Newton podiam perceber o mundo (e todas estas transformações por sua vez foram influenciada pelo influxo da cultura islâmica nos séculos precedentes, saqueada durante as cruzadas…).

É impossível imaginar os avanços de Newton ou Copérnico ou Descartes acontecendo na europa do século XIV. A mente medieval não percebia o mundo da maneira certa para faze-los. Estava muito enevoada com metáforas de paraíso, inferno, anjos, vontade divina, juramentos, dízimos, lealdade, hierarquia e transações feudais; metáforas que, no nosso entendimento, obscureciam sua percepção da realidade. Quando estas metáforas foram transformadas e substituídas, as pessoas puderam ver mais claramente; mas estas transformações não foram e não poderiam ter sido forjadas apenas pelo método científico, mesmo se tal coisa existisse na época. O avanço científico foi inseparável dos avanços políticos, sociais e econômicos. E o mesmo foi verdade para todos os avanços científicos. É igualmente impossível imaginar a descoberta de Darwin na época de Newton, ou a de Heisenberg na época de Darwin.

Os céticos, ao insistirem na primazia do conhecimento científico, negam o valor de metáforas não científicas para avanço científico futuro. Por eles, as democracias liberais do ocidente já fizeram todos os avanços políticos, sociais, culturais e econômicos que precisavam. O pensamento ocidental já é tão livre que qualquer um que tentar pode perceber a realidade diretamente e sem mediação, sem nenhuma metáfora obscurecedora no caminho. Para o olho ocidental treinado, a verdade simplesmente se revela, em tanto detalhe quanto nossa compreensão científica permite. É difícil imaginar uma afirmação mais absoluta de confiança na democracia liberal.

De maneira similar, quando um cético insiste que o pensamento científico deveria ser espalhado pelo mundo todo, ele necessariamente quer dizer que a democracia liberal deveria ser espalhada pelo mundo todo. O que significa dizer que são neoliberais.

Este não é o lugar para descrever as muitas hipocrisias do neoliberalismo. Basta dizer que não acredito que a democracia liberal, que condena a maior parte da população do mundo a variados graus de escravidão, é um sistema perfeito. Eu não acredito que as metáforas da democracia liberal permitam-nos ter uma visão perfeita da realidade. E portanto eu não acredito na primazia do método científico como fonte de conhecimento. Pode ser o melhor que temos, mas quando se trata de avanço humano – inclusive o avanço da própria ciência – outras fontes de conhecimento podem ser tão úteis quanto, e muitas vezes mais importantes.

Eu espero que os seres humanos um dia vivam em uma sociedade mais justa, uma sociedade mais livre, do que qualquer uma que já tenha existido em nossa história. Estou certo de que as pessoas de tal sociedade olhariam para trás para nós e considerariam nossas mentes tão enevoadas hoje quanto consideramos as dos camponeses da idade média, e olharão para trás e verão aqueles que insistiram que tínhamos tudo – os céticos proeminentes entre eles – como olhamos os freis, pregadores, déspotas e outros inimigos históricos do progresso.

A CIÊNCIA SEMPRE TEM UMA DIMENSÃO POLÍTICA


"Céticos gostam de retratar a ciência como sendo uma empreitada auto-corretiva
hermeticamente fechada, em que teorias falsas naturalmente dão passagem
frente a evidências conflitantes, e a verdade sempre se revelará."

Porque percebemos o mundo através de metáforas, todas as observações, teorias, experimentos, afirmações e fatos tem um contexto, inclusive um contexto político. Nossa ciência é necessariamente e inevitavelmente contaminada pelo nosso sistema político; ideologias políticas se propagam através da ciência, e a ciência por si só é incapaz de elimina-las. Isso é largamente compreendido pelas pessoas que estudam a ciência, porém menos pelos próprios cientistas, e nunca pelos céticos.

Céticos gostam de retratar a ciência como sendo uma empreitada auto-corretiva hermeticamente fechada, em que teorias falsas naturalmente dão passagem frente a evidências conflitantes, e a verdade sempre se revelará. Para apoiar esta posição eles sempre contam as mesmas anedotas. Perdi a conta de quantas vezes li o emocionante relato do velho geólogo que alegremente desmantelou o trabalho de sua vida uma vez que a verdade da tectônica de placas lhe fora demonstrada. Entretanto, a história da ciência mostra que tais relatos são a exceção, e que as teorias velhas, e os cientistas velhos, são mais teimosos. Muito mais comum é o cenário descrito por Max Planck:

Uma nova verdade científica não triunfa porque convence seus oponentes e faz com que vejam a luz, e sim porque seus oponentes eventualmente morrem, e uma nova geração cresce familiarizada com ela“.

Essa “nova geração”, não por coincidência, tende a estar armada com novas atitudes políticas.

A ideia de que a política poderia ou deveria ter algum dizer em ciência é um anátema para os céticos. Eles muitas vezes comentam o exemplo do Lysenkoísmo na União Soviética, ou a ciência racista da Alemanha nazista, para ilustrar os perigos de permitir que a ciência seja contaminada por ideologia política. Eles menos vezes reconhecem que a ciência racial não era única da Alemanha nazista, e que o mesmo tipo de lixo racista havia sido entusiasmadamente buscada por cientistas nas mais iluminadas e liberais democracias da época, e era encontrada em todos os livros didáticos de antropologia americanos e ingleses. A eugenia, incluindo a eugenia racial, não era apoiada somente pelos nazistas, mas por pessoas que consideravam-se na vanguarda de tudo que era bom e progressista. A democracia liberal não foi segurança nenhuma contra a influência da ideologia política no pensamento científico (pelo contrário, a democracia liberal é uma ideologia política que influencia o pensamento científico).

Além do mais, céticos nunca reconhecem que a ciência racial foi derrotada por ideologia política, e não pela própria ciência. De fato, não havia nada que a poderia ter derrotado dentro do requadro empírico dos cientistas raciais. Seus experimentos racistas confirmavam suas hipóteses racistas baseados em suas observações racistas. Mas enquanto a ciência os apoiava, a política, na ressaca da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto, não apoiava. Depois de 1945, a ciência racial tornou-se politicamente inaceitável nas democracias liberais do ocidente, e permanece assim apesar da várias tentativas de ressuscita-la. Ela não foi refutada pelo método científico; em vez disso, as ideologias políticas por trás da ciência racial foram descartadas e substituídas por ideologias novas que não a acomodavam.

E quando o consenso político mudar, outras ciências podem tomar o mesmo rumo. Qualquer que seja a ciência que você defende, gerações futuras podem considera-las tão mal direcionadas quanto consideramos a ciência racial hoje. Observamos a realidade através de uma mata cerrada de metáforas políticas; conforme estas metáforas vem e vão, diferentes partes da realidade ficam mais ou menos visíveis; pode ficar mais fácil de ver onde estávamos errados em épocas anteriores, e mais difícil de ver onde estamos errados no presente.

Que partes da realidade as metáforas da democracia liberal da atualidade obscurecem? Estou disposto a crer que ela nos dá uma visão muito boa da realidade física: as “ciências duras” realmente prosperaram nos últimos séculos de progresso político. Fatos como “o Sol é maior do que a Terra” ou “a Terra tem bilhões de anos de idade” ou “humanos e chimpanzés tem um ancestral em comum” são improváveis de serem tornados obsoletos pelo progresso político, certamente não pelo progresso do tipo positivo.

Estou menos disposto a crer que a democracia liberal nos dá uma boa visão das realidades da experiência humana. Eu estou tanto na mata cerrada liberal quanto qualquer outro, então não posso dizer ao certo, mas suspeito que muitas ciências humanas como são praticadas hoje são fortemente enevoadas por suposições políticas dúbias. A mais dúbia delas é a suposição de que o próprio liberalismo seja um contexto politicamente neutro. Isso levou ao fetiche largamente difundido de reduzir problemas sociais, culturais ou psicológicos complexos a dados “quantificáveis” passíveis de estudo científico. Quando esses dados e as conclusões deles tiradas são colocadas à prova do escrutínio de especialistas liberais livre-pensadores, os resultados serão necessariamente isentos de vieses – ou ao menos é o que diz a suposição. Essa suposição pode ir se foder.

O que não é dizer que as ciências humanas estejam completamente incorretas ou sejam inúteis da maneira que são praticas hoje: não tenho tempo para os céticos radicais que descartam qualquer coisa que não seja matemática ou física. Mas céticos deveriam tomar cuidado para não torcer indiscriminadamente por toda ciência, qualquer ciência. Aqui estão apenas alguns exemplos de onde podem jazer os problemas.

  1. Ciência médica. Ao criticar a homeopatia, quiropraxia, cura pela fé e que tais, os céticos tendem a afirmar demasiadamente a integridade da medicina científica, que mesmo com todas as suas conquistas ainda está repleta de dificuldades. Não posso deixar de ter suspeitas a respeito de um campo no qual a pesquisa é dominada por um punhado de corporações particularmente grandes e inescrupulosas. Mas mesmo se a Big Pharma não te incomodar, você deveria considerar, por exemplo, as suposições políticas inerentes nas ciências da patologia e da psicopatologia. Sintomas podem estar lá empiricamente, mas a decisão de categorizar um conjunto de sintomas como uma doença é muitas vezes uma escolha política. Ao longo dos anos, a ciência médica tendeu a transformar em patologia aqueles conjuntos de sintomas que interferem na participação de indivíduos no sistema de lucros (como deficiência física), ou que confirmam a existência de preconceitos sociais (homossexualidade e histeria feminina foram uma vez considerados doenças mentais), ou que podem ser “tratados” de maneira lucrativa, independentemente de os sintomas serem de fato debilitantes (um processo conhecido como mercantilização de doenças). É concebível que para uma sociedade futura todas essas decisões pareçam tão bárbaras quanto a decisão de categorizar um conjunto de medições cranianas como característica de uma raça inferior.
  2. Psicologia evolutiva, sociobiologia etc. Estes campos são, em grande parte, de araque, e quase todos associados a eles, não importa quão tangencialmente, são fontes de bobagem venenosa. O modus operandi da psicologia evolutiva é fazer algumas observações a respeito do comportamento humano (que é tipicamente um artefato estatístico de significatividade duvidosa), tolher-lhe de todo o contexto cultural, histórico, social e político (exceto pelo do próprio cientista), e explica-las como uma consequência necessária do nosso código genético ou do nosso passado caçador-coletor – tipicamente de um jeito que endosse as suposições políticas e culturais do cientista. Pra ser justo, céticos como PZ Myers e Ben Goldacre regularmente criticam os excessos mais obviamente pirados da psicologia evolutiva – mas os métodos e conclusões do celebrado amigo dos céticos Steven Pinker são tão de araque quanto, e raramente são criticados. Talvez porque sua política seja em geral alinhada com o consenso cético.
  3. Linguística, Linguística computacional. Estes foram campos inférteis por décadas, principalmente porque seus praticantes são obcecados com sintaxe e semântica, os elementos da linguagem mais facilmente lidados pelos métodos científicos e de menos importância para a comunicação humana. Estou convencido (e Wittgenstein concorda comigo) que a pragmática da linguagem – seu uso dentro de um contexto – é muito mais significativa; mas um estudo apropriado da pragmática (e não dos lixos quase-semânticos que normalmente vemos) requereriam abandonar aquelas ferramentas lógico-empíricas desajeitadas e admitir a presença e o valor do conhecimento não-científico. Quer saber por que não estaremos nem remotamente próximos de uma inteligência artificial falante no futuro próximo? Culpe os céticos.
  4. Economia. Muitas das alegações da economia de livre-mercado, como a noção de crescimento sem fim, soavam bastante duvidosas para meus ouvidos céticos, e ainda soam. Já vi exposições céticas de esquemas Ponzi (esquemas de pirâmide, em que as pessoas são incitadas a comprar uma ideia da qual apenas uma pequena minoria no tipo tem chance de lucrar) e da Sea Org da Cientologia (em que, para conseguir pagar os produtos e tratamentos mais desejáveis do curso, os membros mais pobres são forçados a escravizarem-se em empregos de merda por um salário miserável ou, caso contrário, arriscarem a infâmia e a destituição), mas ainda não vi um cético fazer a observação óbvia de que ambos esses esquemas são o capitalismo em miniatura. Talvez seja porque a máquina de moto-perpétuo suporte as suposições políticas do ceticismo que nenhum cético esteja interessado em desmerece-la. No geral, eles preferem muito mais desmerecer uma atração secundária de circo.


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O QUE VIDENTES TEM DE TÃO RUIM?

Em suas exposições febris de astrólogos, hipnotizadores, místicos, médiuns espíritas e afins, os céticos normalmente não percebem o fato de que essas coisas são simplesmente fontes de entretenimento para muita gente, e não são mais levadas a sério do que o enredo de qualquer blockbuster hollywoodiano. Para atrações paranormais, a prestidigitação mística é parte do espetáculo, um fato que os céticos estão dispostos a ignorar em artistas que passam pela sua aprovação. No mínimo, a bobagem de poder da mente que Uri Geller usa para vender seus truques de mágica medíocres é menos fraudulenta do que a psicobesteira que o amigo dos céticos Darren Brown usa para vender os seus, nem que seja pelo fato do Uri Geller aparentemente ludibriar a si mesmo mais do que o seu público.

E se você realmente acredita em alguma dessas fraudes, e daí? Em geral elas são apenas uma distração inofensiva, um feixe fraco de diversão para nos guiar através dos dias longos e escuros. Hipnotizadores malignos não estão reprogramando as mentes das pessoas. Os fãs de Uri Geller, se é que existem, não estão machucando ninguém. E astrólogos, exceto nas fantasias paranoicas de céticos, não tem praticamente nenhuma influência no mundo moderno, para o bem ou para o mal. Fora os céticos, a única pessoa que acredita que o antigo astrólogo de Ronald Reagan teve algum impacto na política dos EUA nos anos 80 é o antigo astrólogo de Ronald Reagan (Reagan ter empregado um astrólogo da corte, aliás, foi o menor de seus crimes. O ceticismo seria melhor direcionado para a escória que ele colocou nas posições de poder de verdade).

Tem muito ultraje fingido em sites céticos sobre médiuns espíritas como John Edward, que dizem canalizar vozes “do outro lado”, e ao faze-lo exploram a dor do tipo de gente de quem os céticos riem de qualquer maneira. Edward é obviamente canastrão, mas estou convencido de que muitos de seus clientes estão muito bem a par disso. Eles sabem que ele as dá mentiras, mas são mentiras reconfortantes, mentiras que eles tem a necessidade de ouvir naquele momento. E as transações em dinheiro e a audiência e a prestidigitação mística e até as tentativas desajeitadas de Edward para adivinhar nomes, tudo isso ajuda a legitima-las. Os clientes de Edward estão buscando o tipo de catarse que ele fornece; alegar que ele simplesmente passa a perna neles e pega seu dinheiro não é toda a verdade.

E mesmo no seu pior, os mascates de bobagens místicas são apenas vigaristas da terceira divisão. Seus crimes empalidecem ao lado daqueles das nossas instituições financeiras, e todos os outros que convencem o público a jogar fora suas economias no mercado de ações, a fazer financiamentos que não podem pagar, a comprar lixo que não precisam com dinheiro que não tem e a pagar pelos erros de banqueiros e pela ganância de especuladores. Mas que cético vai expôr esses golpes?

Enganar as pessoas fazendo com que joguem fora seu dinheiro é uma coisa, mas engana-las fazendo com que joguem fora suas vidas é outra bem diferente. Ao ler os comentários de um cético qualquer sobre medicina alternativa, você poderia pensar que apenas doenças cardíacas rivalizariam com ela pelo título de maior matador. É verdade que a medicina alternativa não vai curar as doenças sérias de ninguém, mas também é em geral verdade que os doentes terminais apenas se voltam a ela quando a medicina de verdade deixou-os desesperançados. E o valor da esperança nos dias finais de uma pessoa não deve ser descartado tão facilmente. O falatório relaxado de um charlatão pode ser muito mais reconfortante do que o estresse de um escrivão de hospital que trabalhou demais, e o charlatão tipicamente recebe seus pacientes em um ambiente mais confortável do que um hospital. Se eu vou morrer de qualquer maneira, vou escolher aromaterapia em vez de quimioterapia sem pensar duas vezes.

O valor de placebo da medicina alternativa também não deveria ser tão facilmente descartado, e nem sua ênfase no bem estar em vez da doença. Se um homeopata cura sua coceira imaginária dando-lhe água diluída, será que é tão pior do que um clínico geral curar sua coceira imaginária prescrevendo-lhe paracetamol ou antibióticos? Pode ser bobagem do início ao fim, mas a medicina alternativa ajuda milhões de pessoas a suportarem os dias, sem efeitos colaterais a não ser de soltar uma frase ocasional de bobagem. A medicina de verdade é melhor para curar males reconhecidos, mas a medicina alternativa parece ser melhor para ajudar com um mal crônico não reconhecido: a vida diária sob o sistema capitalista. E assim será até que opiatos estejam livremente disponíveis na forma de pílulas.

"Mas tanto quanto bobagem mística é um edredom para os excluídos, o ceticismo é um edredom para os nerds."

A CIÊNCIA COMO UM COBERTOR QUENTINHO NO ESCURO

É possível defender que os piores perpetradores de bobagens sejam os doidos por conspirações e pseudo-historiadores, que realmente enchem as cabeças de seus seguidores com algumas opiniões repreensíveis. Mas ao desconstruir as besteiras que eles inventam, os céticos perdem de vista a questão mais importante, que é por que eles sentiram a necessidade de inventar essa bobagem pra começo de conversa.

Nosso sistema político, nossa educação e nossa cultura deixam muita gente marginalizada, perdida, impotente, irrelevante e fazem com que se sintam assim diariamente. Mas essas pessoas não são completos idiotas. Elas sabem que tem algo de errado (embora não saibam bem o que), elas sabem que lhes fora negado conhecimento e poder (embora não saibam bem por quem), elas sabem que a vida oficial os deixou no ferro-velho (embora não saibam bem por que). Eles veem a realidade que lhes foi entregue e perguntam ‘será que isso é tudo? Isso é o melhor que fica?’ Então, bem justificadamente, eles inventam uma alternativa. Uma realidade alternativa onde as pessoas que as marginalizaram são reduzidas a vilões de quadrinhos facilmente identificáveis, conspirando em esconderijos subterrâneos. Uma realidade alternativa em que, na maior parte das vezes, eles e seu povo são os heróis: os rebeldes, os destemidos investigadores, os pioneiros da ciência, os verdadeiros guardiões do conhecimento.

E o mesmo é verdade para quase toda bobagem, desde criptozoologia até cristianismo: é uma realidade alternativa para os excluídos, uma terra maravilhosa onde aos perdedores é prometido o triunfo, e O Homem não tem vez. Os mestres da bobagem – os bispos e magos e sábios de cultos – podem ter poder considerável na realidade objetiva, mas seu maior poder é sempre sobre os oprimidos e excluídos.

Para converter seus seguidores para o ceticismo, é inútil pregar, como Dawkins e Phil Plait, sobre as maravilhas da realidade objetiva, não importa o quão eloquentemente eles o façam. A realidade objetiva na democracia liberal pode ser maravilhosa se você é uma personalidade da mídia ou um professor titular em uma frondosa cidade universitária. Mas para a maioria das pessoas, a realidade é um porre. E se elas escolhem rejeita-la, não posso culpa-las. Céticos proselitistas certamente não lhes oferecem nenhum incentivo para mudarem de opinião. Os céticos pedem que os excluídos da sociedade deixem uma realidade em que eles são pessoas boas e valorizadas e entrem em uma em que eles são pedaços de lixo morno. Não surpreende que tão poucos aceitem a oferta.

Mas tanto quanto bobagem mística é um edredom para os excluídos, o ceticismo é um edredom para os nerds. Mesmo os privilegiados precisam ter seus modos reafirmados; ninguém é velho ou grande demais para ser colocado na cama à noite com um apaisador de consciência. Para os nerds, o ceticismo é o esquema auto-justificador perfeito: uma teologia pessoal que valida seus interesses, suas ações, seus preconceitos e sua política. Nesse sentido ele é marcadamente semelhante a um dos alvos preferidos dos céticos.

A ideia de que o ceticismo seja uma religião é frequentemente ridicularizada e derrubada em fóruns céticos. E como muitas vezes no mundo cético, o PZ Myers é quem melhor diz (e aqui, por “Neo Ateísmo”, ele quer dizer mais ou menos exatamente o que eu entendo por “ceticismo”):

“[O 'Neo Ateísmo'] baseia-se em pegar um conjunto de princípios essenciais que se provaram poderosos e úteis no mundo científico — você provavelmente jã reparou que muitos desses ateus insolentes tem um pano de fundo científico — e insistir que eles também devem ser aplicados a tudo mais que as pessoas fazem. Esses princípios são uma confiança em causas naturais e demandar explicações em termos do mundo real, com uma cadeia documentada de evidências que qualquer um pode examinar. As virtudes são pensamento crítico, flexibilidade, abertura, verificação e evidência. Os pecados são dogma, fé, tradição, revelação, superstição e o sobrenatural. Não há escritura sagrada, e a ideia central é que tudo deve estar aberto à crítica racional baseada em evidências — é o oposto do fundamentalismo”.

Eu tenho muito tempo para o Myers, mas não posso concordar com sua alegação de que o dogma não tem seu papel no ceticismo. O dogma cético é, claro, a crença em “um conjunto de princípios essenciais que se provaram poderosos e úteis no mundo científico e insistir que eles também devem ser aplicados a tudo mais que as pessoas fazem”. Essa crença é tão simples e sedutora quanto qualquer uma das alegações que padres e mullahs e gurus fizeram ao longo dos milênios – e quase tão errada quanto. Enquanto a ciência em seu domínio material fez milagres, nos domínios sociais, emocionais e políticos suas conquistas são altamente questionáveis, pra dizer o mínimo.

Mas se o dogma cético te ajuda a passar os dias, não posso culpa-lo: a maioria de nós estamos aqui apenas tentando sobreviver, com o maior conforto e dignidade que pudermos juntar. E de fato, o ceticismo um dia foi uma fé na qual eu mesmo encontrei conforto. E contanto que não faça mal a eles ou a outros, eu não gostaria de desenganar ninguém em relação a sua fé, ou priva-los de seu cobertor quentinho. Apesar de eu acreditar essencialmente que o mundo seria melhor sem religião de nenhum tipo, a fé pode ainda motivar as pessoas para o bem. Céticos seguem uma fé com princípios fundamentalmente bem intencionados; nem todos são “fanboys” de ciência que reagem agressivamente a qualquer crítica; alguns deles fazem uma contribuição decente e positiva para o mundo através de seu ceticismo. Não vou descarta-los pessoalmente só porque o credo deles é ainda mais descreditado do que o cristianismo.


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[ as traduções continuam: enquanto isto, podem prosseguir a leitura
no original ]

10 comentários:

h2d8k6h9 disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marco Idiart disse...

É algo de se pensar. O texto certamente é bem abrangente, ao ponto do autor dizer uma bobagem aqui e ali. Mas claro, ninguém pode saber tudo.
De certa forma, este parece ser o climax de uma reação (inteligente) que vem se montando aos poucos contra o movimento "cético". Curiosamente tenho lido mais sobre a partir dos próprios blogs céticos mais tradicionais.
Penso se no fundo não estamos ficando assustados dos nossos "seguidores".
Mais sobre isto mais tarde. Tenho que correr para uma igreja para ouvir cantatas de Bach. Eu sou um ateu que secretamente rouba boa música durante cultos religiosos.

h2d8k6h9 disse...

Bom texto. O autor expõe bons argumentos em todos os tópicos que aborda, embora haja algumas problemas, como no caso da influência do contexto político, em que ele poderia ser mais específico, já que me parece que há variações dependendo das disciplinas, chegando a ser um tanto implausível na física e química, embora mais presente em temas de psicologia e biologia.

Enfim, se objetivo dele era “rejeitar o ceticismo como identidade” há o suficiente para merecer um debate a respeito. Cada tema obviamente merece uma discussão detalhada, com mais exemplos e contexto, o que expandiria bastante o debate e forçaria uma avaliação mais abrangente (enveredando por questões políticas, históricas, etc), o que talvez não seja o objetivo do Coletivo (ou dos céticos em geral).

O mais interessante para mim agora e que também será um teste para algumas das ideias do autor é a reação dos leitores.

Rodrigo

Marcos Rogério Mota disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marcos Rogério Mota disse...

Bem, é um tanto o que eu "quis dizer" em sem ter talento e erudição pra tanto:
http://edmundoocetico.blogspot.com/2010/11/ser-cetico-sem-ser-chato.html


Mas me atrevo a comentar esse trecho:

A ideia de que a política poderia ou deveria ter algum dizer em ciência é um anátema para os céticos. Eles muitas vezes comentam o exemplo do Lysenkoísmo na União Soviética, ou a ciência racista da Alemanha nazista, para ilustrar os perigos de permitir que a ciência seja contaminada por ideologia política. Eles menos vezes reconhecem que a ciência racial não era única da Alemanha nazista, e que o mesmo tipo de lixo racista havia sido entusiasmadamente buscada por cientistas nas mais iluminadas e liberais democracias da época, e era encontrada em todos os livros didáticos de antropologia americanos e ingleses"

Que nas democracias liberais havia ideias racistas está estabelecido, mas onde elas foram postas em pratica em grau extremo modernamente? E o erro insistente sobre a genetica, teria tamanha duração em circunstancias que nao as da URSS no periodo?

Ciência e Espiritualidade disse...

O ceticismo juramentado é prejudicial ao progresso da ciência.

Chico disse...

Peraí! Esse texto tem muito mais do que 140 caracteres. Mas não vou desistir. Tenho a solução! Numa vida tripla entre trabalho, estudo e família, só me resta imprimir tudo e ler no ônibus. E não tenho medo de usar a impressora do meu empregador para isso. Só que vou tirar as imagens para poupar tinta e aliviar o peso na minha consciência. [print] Foi!

Marcos Rogério Mota disse...

Bem, acho oportuna a crítica feita, mas sinceramente, o capítulo 17(O casamentoomun do assombrado pelos do ceticismo e da admiração) do livro O mundo assombrado pelos demônios, de Carl Sagan é bem melhor.

Pablo Gusmão Rodrigues disse...

Muito bom o texto. Mas trata-se de uma crítica a uma "identidade cética", ou seja, a um grupo social/cultural que seria "os céticos" contemporâneos. Não sei quantas "carapuças" serviram para cada pessoa que leu o texto... Quantos assumem-se como "nerds" e fazem jus ás características que compõem esteriótipo... Quantos mostram-se islamofóbicos... Quantos não se interessam por política ou são declaradamente conservadores... Quantos defendem sempre uma "neutralidade científica", até quando trata-se, na verdade, de uso e comercialização de uma tecnologia (transgênicos na agricultura, por exemplo, é apenas uma questão científica?)... Quantos reduzem o comportamento humano à seleção natural e acreditam na maior cientificidade da retórica sociobiológica na comparação com uma abordagem de cunho mais cultural/social, etc.

Contudo, vale lembrar que o ateísmo, por exemplo, é epistemologicamente muito mais velho que a ciência moderna e, para dar um exemplo de abrangência política, está no pensamento marxista, o qual ainda inspira correntes políticas de esquerda que, independente do juízo que se faça delas, são contrárias ao neoliberalismo. Aos que têm familiaridade com Biologia Evolutiva, lembro de Richard Lewontin, por exemplo, um geneticista ateu, que sempre combate o determinismo genético e foi militante de esquerda. E assim teriam muitos exemplos. Eu diria que é preciso ser cético inclusive com relação à ciência, desde que com argumentos que tenham coerência lógica e respeitem os dados empíricos (filtrado o viés). E, assim, ser cético com relação ao cientificismo absoluto, à crença de que a prática científica estaria imune à subjetividade (inclusive à ideologia), ao reducionismo como forma explicativa (embora possa ser metodologicamente útil), etc.

Mas aí é uma questão conceitual que vai além das definições de dicionários. Se ser cético é o que o texto retrata, então alguns (ou muitos) dos que se dizem céticos prefirião outro termo para se identificarem em contraponto aos religiosos/místicos/sobrenaturais. Alternativamente, a pessoa pode identificar-se como cético mais "à la Bertrand Russell", por exemplo, diferenciando-se dos neo-ateus mais populares de hoje em dia.

Ciência e Espiritualidade disse...

Um pouco de ceticismo é bom para quem busca a verdade(veja Descarte e Emanoel Kant), Mas se for sistemático engessa o pesquisador como o crente que não precisa pesquisar.
Só a ciência pode descobrir se existe uma consciência de todas as possibilidades de existência no vácuo quântico, de onde provém o universo material.
Mas o ateísmo xiita não quer que a ciência pesquise sobre a consciência, vá que exista a "inteléquia" dos gregos.