segunda-feira, 16 de maio de 2011

O dia em que eu absolvi John Scopes!

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Criando o Clima: já na entrada do Teatro, quer dizer, do "Tribunal",
fo
mos recebidos com uma parede de faixas bastante agressivas


Nesta noite de domingo tive a oportunidade insólita de me transportar no tempo, junto com minha família, para Dayton, Tennessee, no mês de julho de 1925. Mais precisamente para o interior do julgamento do professor John Scopes onde, no papel de um dos integrantes do júri, tive o prazer de... absolvê-lo!


Sonhar não custa. Porém, como todos sabem, não foi bem assim que a coisa terminou. E é claro que não passeei em nenhuma máquina do tempo, nem muito menos cheguei a alterar os rumos da história: na vida real, o jovem professor John Scopes foi condenado, ainda que, pela pressão, sua pena tenha sido atenuada. A miraculosa experiência deu-se na Sala Alvaro Moreyra do Teatro Renascença, em Porto Alegre, nas mãos experientes do grupo brasiliense Sesc DF de Pesquisa Cênica, dirigido por Rogero Torquato na peça "O Julgamento do Macaco".

Os atores em cena: começa o julgamento

Nesta versão dinâmica e interativa, o desfecho do julgamento é imprevisível, pois o "Júri" é escolhido em meio ao público. Interessante solução de teatro moderno que possibilita simultaneamente a revivência dramática de um duelo intelectual de titãs - a promotoria X a defesa - , mas também uma "aferição" cultural de quão intolerante nossa sociedade pode estar-se tornando em função principalmente da expansão de seitas fundamentalistas cristãs xerocadas de seus frágeis moldes norte-americanos.

Pois tive a sorte de ser escolhido para integrar o "Júri" e pude assistir a encenação de dentro do palco, saboreando toda a vibração desse texto fabuloso, de tirar a respiração, que conheço quase de cor por ser um aficcionado do filme clássico de 1960, dirigido por Stanley Kramer e que sempre apresentamos (e debatemos) em nossas "Semanas Céticas da UFRGS", como foi o caso em 2008 e 2009 (a propósito, o DVD legendado em português de O Vento será tua herança só ficou disponível nas locadoras brasileiras no fim do ano passado).

"O Julgamento do Macaco" (
Inherit the Wind) é a peça escrita e estreada em 1955, em pleno McCartismo, por Jerome Lawrence and Robert Edwin Lee, e que virou filme por quatro vezes, tanto no cinema (1960), quanto na TV (1965, 1988 e 1999). Trata-se da dramatização do evento de 1925 com o título em português baseado no epítome criada pelo jornalista H. L. Mencken, que acompanhou e narrou, em rede nacional de rádio (isso acontecia pela primeira vez na história), o polêmico julgamento.

Minha oportunidade de inocentar Scopes aqui registrada (peço
desculpas ao pessoal do
Sesc DF de Pesquisa Cênica pelo atrevimento
da foto, mas espero que compreendam esse arroubo de um entusiasta).




Esta montagem resultou numa feliz reunião de talentos, e quero reiterar aqui a satisfação pessoal de não ter minha expectativa frustrada - pois era inevitável comparar à encenação do filme de Kramer, que teve como atores nada menos que Spencer Tracy (Henry Drummond), Fredric March (Matthew Harrison Brady), Gene Kelly (E. K. Hornbeck), e Dick
York
(Bertram Cates): o que pude assistir domingo à noite foi uma encenação impecável, com ritmo firme e consistente, além de bastante homogênea - todos deram o máximo e o conjunto manteve-se vibrante até o final. Não sou crítico de teatro, portanto não ousarei dizer que este ou
aquele ator foi melhor ou pior que aquele outro, embora os diferentes papéis favoreçam
interpretações mais o
u menos marcantes.

O grupo apresentou-se apenas duas vezes na cidade, dentro da programação do 6o. Festival Palco Giratório SESC 2011 Porto Alegre, e foi uma pena que a comunidade cética daqui não teve acesso à divulgação deste espetáculo em tempo... esta oportunidade ficou "perdida" na torrente de inúmeros eventos espalhados por toda cidade, cuja divulgação foi limitada. Esperamos ansiosamente poder vê-los novamente por aqui com este estupendo trabalho. Nesta encenação em Porto Alegre, os atores, seus personagens na peça, e quem eles representavam, foram, tanto quanto pude averiguar:
  • Humberto Pedrancini como Henry Drummond (representando Clarence Darrow)
  • Alaor Rosa como Matthew Harrison Brady (representando William Jennings Bryan)
  • Roustang Carrilho como E. K. Hornbeck do jornal Baltimore Herald (representando Henry L. Mencken, do The Baltimore Sun)
  • Samuel Cerkvenik como Bertram T. Cates (representando John Scopes)
  • Geórgia Nascimento como Rachel Brown
  • Guto Viscardi como Rev. Jeremiah Brown
  • Reinaldo Vieira como Juiz Mel Coffey
  • ____ como Meirinha
Os atores do grupo Sesc DF de Pesquisa Cênica estão de parabéns!


Esta fantástica experiência não estaria completa sem os dois comentários que gostaria de desenvolver a seguir.

(1) sobre o veredito:

Nosso veredito aquela noite foi unânime, e os cinco votamos "inocente" (e dane-se o legalismo estrito!). Mas aí veio a discussão com o elenco do final do espetáculo, e é claro que queríamos saber se também já teria havido algum veredito de "culpado" pelo Brasil afora...

- "Sim, já houve!", respondeu o ator que representara o reverendo Brown.

Mas quantas vezes isso aconteceu?

- "Quatro vezes, em cerca de quarenta apresentações", e nos mais variados rincões do país, nos relatam.

Impressionante, ponderamos, isso significa... 10% das exibições! Seria esse um eventual indicador de que o mesmo tipo de intolerância dissecado nesta peça está-se a disseminar também pelo Brasil?

Dissecamos esse dados mais um pouco, perguntando qual o perfil dos jurados que tendem a condenar (ou em que localidades eles vivem):

- "Uma vez fizemos para um grupo de advogados, e o Júri o considerou "culpado".

Claro, pois do ponto de vista puramente técnico, Cates / Scopes tinha, de fato, "infringido a lei"... Faltou-lhes a coragem que também faltou ao Júri de Dayton em 1925 - controlado pelo juiz e pelo pastor. Pois era a lei absurda que, de fato, deveria ser julgada, mesmo descontada a "tecnicalidade" de que aquela não era uma corte suprema, com competência para julgar leis - como foi inclusive comentado pelo juiz durante o espetáculo. No fundo, repete-se o tema-chave do Julgamento de Nuremberg - também levado magistralmente às telas por Stanley Kramer, com o mesmo estupendo Spencer Tracy - onde os crimes de lesa-humanidade têm precedência sobre se eram ou não válidas as "leis" do nazismo. Esta também a fonte do caráter épico desta peça e, de certo modo, do teor literalmente mitológico da moral dessa história.

- "outra vez, foi um grupo de estudantes que condenou", mas talvez estivessem de brincadeira, experimentando para "ver no que dá", comentaram.

Talvez. Talvez o hábito saudável de frequentar o teatro ainda seja muito raro pelo Brasil "profundo". Fico pensando em como seria a exibição pré-anunciada deste espetáculo em uma comunidade mais fechada, religiosa, digamos, de tiragem pentecostal... Talvez a produção do teatro nem precisasse colocar as faixas para "criar o clima" na entrada. Talvez o grupo até se colocasse sob risco (e o pastor/reverendo seria ovacionado).

(2) sobre a fidelidade histórica da peça:

Como todo trabalho de arte, detalhes da vida real são sacrificados em busca de um resultado mais consistente, de uma trama mais envolvente. Portando, é de se esperar que a peça contenha algumas imprecisões históricas. Mas isso não importa muito, já que ela
foi um divisor de águas na história da cultura científica dos EUA, e também linha de frente na defesa de direitos civis, atuando na resistência ao McCartismo. Dá vida a um embate de dimensões quase mitológicas na cultura ocidental, abordando o delicado equilíbrio entre conhecimento e fé, um debate que, como as ondas do mar, vão e vêm sem jamais fenecer.

Curiosamente, o texto do grande dramaturgo Jerome Lawrence cria uma encenação estilizada de algo que já fora, na ocasião, também uma grande encenação... Na verdade Scopes não foi, como crêem alguns, um "inocente" professor de ciências que, por ensinar a Teoria da Evolução e as idéias de Darwin na escola, foi perseguido por fundamentalistas
fanáticos. O fundamentalismo, porém, era muito real, e ele foi, sim, perseguido, mas o fora como voluntário da ACLU para ajudar a desafiar, em um tribunal (e de forma espetacular, se possível) a absurda lei anti-evolucionista conhecida como Butler Act, criada em março daquele ano pelo Deputado do Tennessee John W. Butler, lider da World's Christian Fundamentals Association.

Darrow e Bryan durante o julgamento.

A idéia toda era derrubar esse desastroso precedente legal mostrando ser inconstitucional. Aliás, a lei tinha contradições óbvias, pois os professores do estado também eram obrigados a usar um livro escolar - A Civic Biology, de George William Hunter - que falava em evolução, sendo, portanto, obrigados a desrespeitar a lei... Outro fator que pesou foi que uma reunião de comerciantes locais apoiou o convite da ACLU feito a Scopes (um deles era amigo de Scopes) pensando deliberadamente na grande mobilização comercial que adviria em função do julgamento, que traria publicidade, para o bem ou para o mal (nos negócios, isso não importa muito, não é mesmo?), à decadente cidadezinha de Dayton.

Sabendo da prisão de Scopes, William Jennings Bryan
ofereceu-se para ajudar a acusação, apesar de não atuar em tribunais há décadas. Político muito conhecido, foi derrotado três vezes para a presidência dos EUA, sempre pelo Partido Democrático (para os padrões da época, era um "liberal", destacado até por defender causas como o voto feminino) e passara a dedicar-se à pregação anti-darwinista. Na defesa da bíblia, dizia coisas como "[i]t is better to trust in the Rock of Ages*, than to know the age of the rocks; it is better for one to know that he is close to the Heavenly Father, than to know how far the stars in the heavens are apart", trecho utilizado na peça.

Tão importante era a causa para os progressistas, que até mesmo personalidades como o inglês
H. G. Wells chegaram a ser convidadas, mas este recusou por desconhecer os meandros do judiciário local. O Jornal Baltimore Sun custeou um super-time de advogados (e testemunhas, a maioria das quais foi recusada), que além do agnóstico e anticlerical Clarence Darrow, tinha outras grandes estrelas, como o representante da ACLU, Arthur Garfield Hays, e o defensor internacional das leis do divórcio e ex-membro do Departamento de Estado, Dudley Field Malone (que também protagonizou algumas falas notáveis que, na peça, acabaram atribuídas a Darrow).

São detalhes interessantes e relevantes, por vezes até usados para achicalhar essa obra, mas que ao meu ver não tiram seu brilho, nem seu indiscutível valor educativo. Muito menos o poder civilizatório deste texto, tão necessário hoje quanto ontem.


(*) Também origem do título do livro de S. J. Gould em que descreve sua posição com relação à religião ("Rocks of Ages"), e cujo trocadilho se perde na tradução ao português ("Pilares do Tempo").

Referências:
(v.2, de 17mai2011)
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O JULGAMENTO DO MACACO
Grupo SESC-DF de Pesquisa Cênica (DF)

Sinopse: baseada em fatos reais, a peça conta a estória de um Professor que, em 1925, nos Estados Unidos, desafia uma lei que proibia o ensino da Teoria da Evolução. O Professor Cates infringe a Lei querendo abrir o debate para a sociedade americana sobre a liberdade de expressão. Brady, candidato à Presidência da República
dos Estados Unidos, assume a Promotoria, fazendo do caso um exemplo e buscando autopromoção. O mais famoso e competente advogado agnóstico da época, Henry Drummund, assume a Defesa, custeado pelo Jornal Baltimore Herald, que envia seu jornalista mais ácido e notório crítico, para cobrir o caso. Um cidadão busca liberdade de expressão: ele deseja ensinar ciências em uma aula de ciências.

O grupo: criado com o intuito de realizar pesquisa de linguagem naárea de teatro, circo, dança, performance e encenação para áudio visual, o Grupo SESC de Pesquisa Cênica, mantido pelo SESC-DF desde 2009, vem estimulando o surgimento de novas formas de leitura das artes Cênicas sem deixar de lado as já existentes, levando ao conhecimento do maior número de pessoas possível, obras da dramaturgia própria, brasileira e
internacional. Já tendo em seu repertório as montagens de “O Rei da Vela” de Oswald de Andrade e “O Julgamento do Macaco” cujo roteiro, baseado em fatos reais, foi desenvolvido pelo próprio Grupo. Neste momento o Grupo SESC de Pesquisa Cênica está desenvolvendo a montagem da comédia teatral “A infidelidade ao Alcance de Todos” de Lauro Cesar Munis, com estreia prevista para maio de 2011 e a pesquisa sobre a obra de Alfred Hitchcock para montagem no próximo semestre.

Ficha técnica:
Roteiro e adaptação: Grupo SESC-DF de Pesquisa Cênica / Direção: Rogero Torquato / Elenco: Alaôr Rosa, Alex de Castro, Georgia Nascimento, Guto Viscardi, Humberto Pedrancini, Reinaldo Vieira, Roustang Carrilho e Samuel Cerkvenik. / Cenografia: Chico Junior e Vera Dantas / Figurinos: Roustang Carrilho / Iluminação: Dalton Camargo / Trilha sonora: Juliano Goulart / Produção: Nalva Sysnandes / Duração do espetáculo: 75min / Gênero: teatro adulto (Classificação etária: 12 anos)

Blogue do Grupo: http://ojulgamentodomacaco.blogspot.com/

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4 comentários:

Silva Mestiço da, disse...

Experiencia fantastica, muito bom!

Me recordo de ainda na escola ouvir alunos religiosos zombando da teoria da evolu;ao. Diziam que os evolucionistas rezavam assim, Pai nosso que estais no mato...

Jorge Quillfeldt disse...

Escrever esse relato deu um certo trabalho, e a tarefa não parece terminar nunca. Consegui finalmente inserir um comentário adicional extremamente relevante para nossa discussão aqui. Se alguém se interessar, o texto foi revisado (agora é a versão 2).

Nubem Medeiros disse...

J. Q. é bom em tudo o que faz.
Excelente trabalho.
Nubem Medeiros.

Alex Prospero disse...

Parabéns pela excelente crítica e comentários saborosos. É um prazer ver nosso trabalho reconhecido por um "jurado" tão atento. :^)

Alex de Castro
Assistente de Direção