Um desafio darwiniano aos sistemas
públicos de saúde do mundo: o vírus Ebola
públicos de saúde do mundo: o vírus Ebola
Jorge A Quillfeldt [escrito em 28ago2014]
Coluna Observatório - Sci.Am.Br. # 149
Coluna Observatório - Sci.Am.Br. # 149
A perfeição deste agente patogênico reside no “sem carregar malas”, pois vírus são constituídos apenas de material genético, e, dentro de uma célula, utilizam-se dos recursos moleculares e energéticos da hospedeira para copiar-se profusamente. Também constróem, ali, seus capsídeos, invólucros proteicos que permitem a sobrevivência e transporte daqueles genes em sua versão dormente, que se difunde pelo ambiente. Tal forma metabolicamente inativa – o vírion – não é exatamente um “ser vivo”, mas, antes, um produto da evolução por seleção natural com organização minimalista. Contém apenas o necessário para... persistir!
Vírus são fascinantes, mas também têm seu lado aterrorizante enquanto agentes causadores de epidemias ou pandemias. Parte desse medo tem fundamento, pois apesar de numericamente majoritários no planeta, ainda sabemos pouco sobre esses patógenos. E eis que entra em cena o vilão microscópico do momento, o vírus Ebola, causador da febre hemorrágica com a mais alta taxa de mortalidade conhecida: de 60% a 90%!
Neste momento, o vírus se espalha em pelo menos quatro países da África ocidental no maior surto desde sua descoberta em 1976. Até agosto passado, o vírus infectou e matou mais pessoas que a soma de todas as vítimas dos surtos anteriores. Pelas condições precárias da saúde na região, a longa duração deste surto favorece o acúmulo de mutações nesses vírus que podem piorar a situação. Por isso, a OMS, em 8/8/2014, declarou a situação como “emergência de saúde de preocupação internacional”.
A situação preocupa por que é um vírus muito agressivo, com contágio pelo simples contato entre pessoas e animais. E não existe tratamento ou prevenção eficaz para a doença. Algumas preparações antivirais estão sendo estudadas (TKM-Ebola, ZMab, Zmapp), e vacinas estão em desenvolvimento, mas são propostas incipientes, aguardando a fase de testes em humanos. A OMS estima que uma vacina só estará disponível a partir de 2016.
Um complicante é não compreendermos todo o ciclo natural do vírus, uma vez que não sabemos, com certeza, qual o seu reservatório natural, ou seja, que organismo hospeda o vírus de forma duradoura na natureza, sem, porém, contrair a doença. O melhor candidato é uma espécie de morcego frugívoro da região. Infelizmente esse animal também é considerado uma iguaria entre os habitantes da região... Entre humanos, a disseminação se dá pelo contacto com corpos e secreções infectadas: devido à pouca informação e certos costumes, como o de lavar ritualmente os mortos com as próprias mãos, a epidemia se alastra.
Os sinais e sintomas iniciais são confusos, pois são muito similares aos de outras doenças: febre súbita, cefaléia, fraqueza e dor muscular, seguidas de vômitos, diarréia, rash cutâneo e disfunção hepática e/ou renal, podendo ocorrer hemorragias externas ou internas. A confirmação do Ebola exige demorados testes laboratoriais (período durante o qual podem ocorrer novos contágios se não houver isolamento do suspeito), e o período de incubação varia de 2 a 21 dias (favorecendo o transporte do vírus até regiões isoladas antes dos sintomas emergirem).
O quadro é preocupante, e só não chega a ser alarmante pelo fato de, até onde sabemos, o contágio se dar apenas mediante contacto direto. O vírus parece não transmitir-se pelo ar, apenas a partir de pacientes sintomáticos (ou mortos recentes), e os sobreviventes parecem curar-se em até dois meses, não havendo registros de doentes crônicos. A alta letalidade do Ebola também limita naturalmente sua disseminação, reduzindo o tempo de exposição/contágio.
A explosão do Ebola traz à tona a temática das chamadas “doenças negligenciadas” – características dos países pobres, já bastante prejudicados pelo baixo investimento em saúde. A escassez de medicamentos e mesmo de conhecimentos científicos e tecnológicos necessários se deve ao fato de que essas enfermidades não interessam à grande indústria farmacêutica, mais dedicada às doenças crônicas prevalentes nos países ricos, mais lucrativas no longo prazo. Choca saber que investe-se, hoje, mais em pesquisa sobre calvície ou disfunção erétil, que no estudo de doenças agudas que devastam regiões inteiras do planeta.
Diante dessas lacunas de conhecimento, os rumos da atual epidemia ficam à mercê das limitações dos sistemas de saúde pública dos países atingidos, sabidamente precários. Se já é ruim que a falta de recursos afete o atendimento aos doentes, mais perversa ainda é a típica ausência de serviços profiláticos, pois agentes de saúde bem treinados e um esforço constante de educação da população poderiam fazer amenizar significativamente a propagação do vírus.
O problema é de todos: de nada servem investimentos adequados apenas nos redutos bem aquinhoados dos países do primeiro mundo. Quando epidemias terríveis emergem, não há onde esconder-se nesse globo encolhido pelo veloz transporte aéreo de massas. Todos, ricos e pobres, acabarão pagando pela perpétua desigualdade sócio-econômica que só favorece a expansão de epidemias como a do Ebola.
Curiosamente, a causas dessa desigualdade não estão nos genes de nenhum ser vivo. Muito menos dos vírus.
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