terça-feira, 4 de setembro de 2012

A ciência pode acabar?

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Estréia esta semana a coluna regular do Jorge Quillfeldt na Scientific American Brasil, coluna esta dividida entre quatro colaboradores, a saber, o astrofísico Mário Novello, do CBPF (já publicada em junho 2012), o físico Otaviano Helene da USP (em julho 2012) e o historiador Nelson Aprobato Filho também da USP (em agosto 2012). Sendo quatro autores, cada um escreve três vezes ao ano. Reproduzimos abaixo a coluna que está na edição de Setembro da revista, disponível nas bancas. Como bônus, mantivemos a grafia pré-reforma original!








A Ciência pode acabar?

Um dos principais marcos da cultura ocidental é o advento da ciência, que não só tem permitido o desenvolvimento das principais tecnologias da atualidade, mas também satisfaz aquela outra sede, tão particularmente humana, que é a sede de conhecer. A compreensão do mundo material favorecida pelo método científico não tem comparação com qualquer outra via de obtenção de conhecimentos. Um dos sustentáculos da atividade científica é precisamente um amplo compartilhamento de dados, conceitos, idéias, não só entre cientistas, mas também com o público em geral. Imagine se um dia esse fluxo de conhecimentos cessasse, como ficaríamos?
O tema já foi explorado sob diferentes ângulos, como, por exemplo, fez John Horgan em seu O Fim da Ciência – Uma discussão sobre os limites do conhecimento científico (Cia das Letras, 1996). Neste livro, Horgan entrevista cientistas e intelectuais perguntando, entre outras coisas, se eles creem ter o conhecimento científico atingido um apogeu e, a partir de agora, não ser mais capaz de avançar significativamente, nem muito menos prover benefícios reais à humanidade. O conhecimento possível teria atingido um limite – já saberíamos tudo que há para saber – por que a natureza não teria muito mais coisa escondida de nossos “sentidos ampliados pelas tecnologias”, que são as ferramentas da ciência empírica. Essa idéia de um limite físico do conhecimento já fora até postulada por alguns cientistas no final do século XIX, mas bastou surgirem a relatividade, a mecânica quântica e a biologia molecular, por exemplo, para evidenciar o tamanho do equívoco.
 Há, também, a perturbadora possibilidade de que o limite seja de natureza cognitiva, que limitações em nossa própria estrutura mental – como o conhecimento a priori de causa apontado por Kant, por exemplo acabem impedindo nossa compreensão do mundo a partir de certo nível de complexidade. Embora essa idéia esteja longe de ser demonstrada, há quem proponha – num flerte com a ficção científica – que, se nós não pudermos, máquinas inteligentes por nós desenvolvidas, poderiam. Só o tempo dirá.
 Mas pode ser que os limites do conhecimento sejam atingidos muito antes de arranharmos os hipotéticos obstáculos acima, e por razões bem mais mundanas: causas sociais. Já Mario Bunge, físico e filósofo da ciência argentino, advertia que a ciência como conhecemos pode desaparecer, e que até mesmo “já morreu várias vezes”, referindo-se ao ocaso da Grécia clássica – simbolizada pela segunda destruição da Biblioteca de Alexandria e a ascenção do pragmatismo romano - e ao interregno vivido pela ciência italiana sob o fascismo.
Mas não é necessário invocar situações tão dramáticas. O Nobel em física de Stanford, Robert B. Laughlin, formulou uma crítica que surpreendeu a muitos em seu livro de 2008, The Crime of Reason and the Closing of the Scientific Mind (“O Crime da Razão – O fim da mentalidade científica”, ainda sem tradução aqui). Laughlin descreve o atual quadro de crescentes restrições no acesso ao conhecimento pelo grande público e mesmo pela comunidade científica em função de legislações de proteção comercial, patenteamentos abusivos, profusão de processos judiciários sobre propriedade intelectual, e a onipresença da propaganda comercial.
A alegação soa um tanto contraintuitiva para quem vive em meio à era da internet, onde tudo parece estar ao alcance de todos, mas Laughlin constrói bem seu caso, em um estilo leve e bem embasado: na internet, a escalada comercial cria tanto ruído que é cada vez mais difícil encontrar-se informações realmente valiosas (exceto mediante pagamento); na pesquisa científica, estudos relevantes são bloqueados por demandas judiciais patentárias, ao passo que nos EUA chega a ser arriscado ter ou dar acesso, mesmo que acidentalmente, a conhecimentos tidos como “perigosos”. A suprema corte americana, mesmo após decidir que princípios matemáticos e leis da natureza não podiam ser patenteados, acabou autorizando o patenteamento de programas de computador e de trechos do código genético humano: a crise de legitimidade vivida pelo atual sistema de propriedade intelectual, infelizmente, também se dá longe dos olhos do público.
Se Laughlin estiver certo, existe um conflito fundamental entre as necessidades de segurança e prosperidade econômica em nossa sociedade, por um lado, e o direito humano de conhecer e aprender – fruto dessa necessidade que nos distingüe, como humanos, dos outros animais. O futuro do conhecimento científico depende de sua resolução. O bom é que, enquanto os limites físico e cognitivo são externos e pouco podemos fazer para superá-los, a limitação social é de origem humana, logo comporta soluções, ainda que difíceis. Precisou um prêmio Nobel para dar voz a essa preocupação sem cair no lodaçal das “teorias conspiratórias”. Ainda há tempo para reverter essa tendência, deixando definitivamente para trás esses tempos que Laughlin ironicamente denominou de era da amnésia.


Um comentário:

Bruno Feitosa disse...

Post muito bom aguardo mais do mesmo!