sexta-feira, 7 de maio de 2010

E aí, vovô!

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À luz da fogueira, ele acariciou a pele clara, as pernas curtas e as madeixas ruivas da moça. Tudo nela contrastava com a tez escura e o porte esguio de seu amante. Os descendentes do encontro improvável, 50 mil anos depois, ainda estão por aí.

Humanos tiveram filhos com neandertais
Genoma de primo mais próximo da humanidade revela que europeus e asiáticos têm até 4% de DNA desse hominídeo extinto. Cruzamento teria ocorrido 50 mil anos atrás, quando grupos de "Homo sapiens" saídos da África chegaram ao Oriente Médio pela 1ª vez



REINALDO JOSÉ LOPES
DA REPORTAGEM LOCAL

À luz da fogueira, ele acariciou a pele clara, as pernas curtas e as madeixas ruivas da moça. Tudo nela contrastava com a tez escura e o porte esguio de seu amante. Os descendentes do encontro improvável, 50 mil anos depois, ainda estão por aí.
E não é uma família pequena: são todos os seres humanos modernos fora da África, cujo DNA carrega uma contribuição pequena, mas considerável (entre 1% e 4%), dos neandertais, primos extintos do homem. A ruiva e o moreno do romance acima representam os neandertais e o Homo sapiens.
O dado vem da primeira análise de fôlego do gen oma neandertal, publicada na edição de hoje da revista "Science".
Ele surpreende porque, até agora, achava-se que a história dos neandertais tivesse acabado em guerra e não em amor: eles foram extintos há 25 mil anos, após milênios de competição com os tecnologicamente avançados sapiens.
Um grupo de cientistas liderados por Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, na Alemanha, conseguiu usar o material genético de três fósseis da espécie extinta para ler cerca de dois terços de seu genoma.
O DNA neandertal foi comparado com as "letras" químicas totalmente decifradas de chimpanzés e humanos. Entraram na comparação cinco outros genomas de pessoas vivas.
Tais doadores (dois africanos, um papuano, um chinês e um francês) representam quase toda a diversidade genética da humanidade atual.
Passo seguinte: alinhar os bilhões de letrinhas dos genomas. É como escrever a mesma frase várias vezes, uma frase emb aixo da outra, levando em conta que acontecerão erros de cópia do texto (mutações).
Se humanos e neandertais não cruzaram depois da separação de suas linhagens, todos os humanos modernos deveriam ter o mesmo texto genético em relação ao DNA do neandertal. Mas não é o que acontece, como explicou à Folha o antropólogo John Hawks, da Universidade de Wisconsin, EUA.
"Em vários casos, quando há uma diferença entre o genoma de um africano e o de um não africano, a versão das populações que não são originárias da África bate com a dos neandertais", diz ele. "O único jeito de explicar esses dados é por cruzamento", continua.

Pesquisa encerra debate de uma década
Evidência de mistura entre humano e neandertal surpreendeu até o líder da pesquisa, para quem espécies podem ser uma só. Estudo de DNA de fósseis de 40 mil anos só foi possível graças a técnica avançada de soletração, que permitiu eliminar genes de bactérias.

Frank Vinken/EVA-MPG

O pesquisador Tomislav Maricic manipula osso neandertal em sala limpa, para evitar contaminação com DNA dos cientistas

DA REPORTAGEM LOCAL

A decifração do genoma do neandertal é uma vitória tecnológica do sueco Svante Pääbo e de sua equipe.
Desde 2006, eles tentam sequenciar o DNA dos fósseis da Croácia, enfrentando dois problemas enormes: o fato de que DNA antigo não costuma se conservar bem e a altíssima contaminação das amostras.
Cerca de 95% do DNA extraído vinha não dos ossos, mas de bactérias. Para eliminar a contaminação, foi preciso usar técnicas que iam de enzimas que picotavam DNA bacteriano ao sequenciamento de um mesmo trecho várias vezes.
O verdadeiro triunfo da nova pesquisa, porém, talvez caiba a alguém que não participou dela: o arqueólogo português João Zilhão, da Universidade de Bristol (Reino Unido).
Até ontem, Zilhão era um defensor quase solitário da mestiçagem homem-neandertal, contestado pelo próprio Pääbo.
"Que quer que lhe diga senão que é o que andamos a dizer há já mais de dez anos?", brincou Zilhão, ao responder à Fol ha se estava se sentindo vingado pelo novo anúncio.
Como todos os grupos humanos que vivem fora da África parecem carregar o mesmo toque neandertal em seu DNA, Pääbo e colegas propõem que a mestiçagem ocorreu nos primeiros encontros das duas espécies, entre 80 mil e 50 mil anos atrás, no Oriente Médio.
"Qualquer dispersão de populações da África para a Europa e Ásia Central tem de passar por aí", concorda Zilhão.
Em princípio, não há nada que impeça o nascimento de híbridos férteis de espécies muito próximas, lembra Pääbo. Ele, no entanto, diz que a discussão sobre considerar ou não os neandertais como espécie separada é "infrutífera".
"Prefiro dizer que eles simplesmente eram um grupo de humanos um pouco mais diferentes de nós do que nós somos uns dos outros, mas não por uma margem muito grande."
Outro membro da equipe, David Reich, da Universidade Harvard (EUA), diz que ainda não é possível dizer o que predomino u nos cruzamentos: homens modernos com mulheres neandertais ou vice-versa.
Por enquanto, o que se sabe é que não há traços neandertais no DNA mitocondrial das pessoas de hoje. Presente nas mitocôndrias, as usinas de energia das células, esse DNA só é transmitido da mãe para os filhos. No entanto, como basta uma mulher não ter filhas para não passá-lo adiante, é muito fácil que esse tipo de linhagem genética acabe sumindo. (RJL)

ANÁLISE

Espécie "primitiva" revela quem somos

DA REPORTAGEM LOCAL

Afinal, algo entre 1% e 4% do genoma de uma pessoa -a contribuição calculada dos neandertais para os não africanos - é pouco? Depende. O antropólogo americano John Hawks fez as contas: é o mesmo legado hereditário que um tataravô ou tataravó deixaria para você.
A diferença é que, no caso dos neandertais, isso persistiu depois de 1.500 gerações, e não de cinco. De certa forma, é como se, entre quase 7 bilhões de pessoas vivas hoje, houvesse 50 milhões de neandertais por aí.
Essa talvez seja a primeira revolução mental embutida na publicação do genoma. Depois de algumas décadas caricaturando os neandertais como inferiores, lerdos, menos sofisticados, a sobrevivência dessa porção pequena mas significativa deles mostra que, paradoxalmente, eles foram um sucesso evolutivo considerável.
Ao que parece, ao menos alguns ancestrais das pessoas de hoje não os consideravam inferiores ao status de "humano de verdade". E, falando de "o que sig nifica ser humano", essa talvez seja a maior dádiva desses parentes desaparecidos. O genoma deles é uma grande chance de atacar essa pergunta.
Isso porque, até agora, o único ponto de apoio para entender as mudanças genéticas que criaram a humanidade era o genoma dos chimpanzés. O problema é que 6,5 milhões de anos separam o homem de hoje do ancestral comum que compartilha com os macacos. É um oceano de tempo, no qual dezenas de espécies de homens-macacos podem ter existido.
O "divórcio" da linhagem humana-neandertal, porém, tem só 400 mil anos. É justamente a janela de tempo em que a arte, as ferramentas complexas e a religião surgiram. A equipe que soletrou o genoma já está achando diferenças mínimas, mas talvez significativas, entre o Homo sapiens e seu primo.
Já há, por exemplo, uma lista de apenas 88 proteínas que diferem entre as espécies. E não dá para descartar uma possibilidade irônica: a de que pelo menos alguns dos genes i mportantes para o comportamento ou a inteligência humana tenham vindo dos neandertais.
O genoma é, por último, um triunfo de como a ciência funciona. Svante Pääbo, coordenador do projeto, negou durante anos que a mestiçagem tivesse ocorrido. Ele apostava em dados preliminares de DNA, contra o que alguns antropólogos diziam ver nos fósseis.
Teve de voltar atrás. O antropólogo Erik Trinkaus, defensor da hipótese híbrida, diz que o preconceito, talvez algum nojo, explicava a resistência à ideia. Se for verdade, é confortador ver que alguns preconceitos não resistem à ciência honesta. (REINALDO JOSÉ LOPES)

Fonte: http://www.folha.uol.com.br/

6 comentários:

Marco Idiart disse...

Gostei desta última parte que fala de como um dos cientistas importantes do projeto era de fato alguém que defendia uma teoria onde não teria havido o cruzamento. E os dados o fizeram mudar de idéia.

Acho que será bem interessante quando se conseguir sequenciar outros hominídeos. Ai vamos poder olhar melhor para o passado.

Cinthya Verri disse...

Que maravilha este blog! Conheci via Twitter do Nasi. A descoberta da semana. TKS!

Anônimo disse...

Também acabei de descobri esse blog. Via twitter da Cinthya. Adorei!

Chico disse...

Já me perguntei se seria possível um híbrido humano-chimpanzé. Quando vi essa postagem tive a idéia (óbvia) de procurar no Google sobre o assunto. Já tentaram fazer o cruzamento, como dito na Wikipedia (http://en.wikipedia.org/wiki/Humanzee), mas até agora sem sucesso comprovado.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Bosco Ferreira disse...

Ótimo blog, conhecí através do "bulevoador" que conhecí através do "index" do Daniel Lopes. Dois ótimos blogs também.