quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Errar é científico, insistir no erro é esotérico (por Antonio L.M.C. Costa)

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Um cientista tem maior probabilidade de estar certo sobre problemas relativos à sua especialidade do que um leigo. Mas errar é inevitável nessa profissão. Sempre que se formula um novo problema ou se abre um novo campo de pesquisa, várias hipóteses concorrentes são formuladas, das quais a maioria sucumbe a questionamentos lógicos e matemáticos ou aos testes experimentais. Mesmo teorias aceitas por muito tempo e com base nas quais foram desenvolvidos programas de pesquisa férteis e invenções úteis, podem ser superadas e se mostrar “erradas” quando confrontadas a problemas novos e inesperados, como a mecânica newtoniana ao ser confrontada com os fenômenos quânticos e relativísticos.



Isso faz parte da história e da lógica da ciência: não se trata de uma verdade revelada, mas da construção gradual de teorias cada vez mais amplas, precisas e consistentes, buscando por aproximações sucessivas uma explicação mais completa e perfeita do Universo, sem jamais pretender a verdade absoluta e definitiva. Uma nova teoria pretende apenas oferecer uma “verdade” mais robusta – ou seja, mais resistente a testes e questionamentos – e que ao mesmo tempo seja mais abrangente, refinada e precisa que as concepções anteriores.

A mentalidade religiosa tem dificuldades em entender a relatividade da verdade e do erro pressupostas pelo método científico. Não compreende que a ciência não propõe apenas um conteúdo diferente, mas também uma diferente concepção de “verdade” e outro caminho para chegar a ela.

Não é raro encontrar fundamentalistas religiosos alegando que a teoria da Evolução está refutada porque duas correntes evolucionistas têm alguma discordância ou porque tal ou qual hipótese ou especulação de um evolucionista do século XIX ou do começo do século passado foi superada por descobertas empíricas ou por desenvolvimentos teóricos mais recentes dentro da própria teoria da Evolução. Pensam nas pessoas de mentalidade científica como se fossem seus reflexos invertidos e vissem em cada artigo científico uma Bíblia e em cada cientista um profeta ou papa infalível.

Esse tema dá muito pano para manga, mas nesta oportunidade pretendemos nos referir ao outro lado da moeda. Pensamentos de tipo religioso que incorporaram partes da ciência de seu tempo e pretenderam superar religiões mais tradicionais apresentando-se como revelação e síntese definitiva da religião e da ciência, esquecendo-se que o segundo termo da equação, por definição, jamais é definitivo.
Isso foi particularmente comum em correntes religiosas e esotéricas surgidas a partir de meados do século XIX, quando o interesse popular pela ciência foi despertado pela educação pública, por livros de divulgação científica e pela rápida difusão de novas invenções e descobertas.

Muitas das novas “verdades reveladas” usaram da aparente compatibilidade com algumas das mais arrojadas concepções científicas de seu tempo para afirmar sua superioridade. Tanto em relação tanto às religiões tradicionais, baseadas em concepções de mundo pré-modernas, quanto à própria ciência de seu tempo, já que alegavam poder “revelar” com certeza o que para a ciência era mera hipótese, proporcionar exatidão quando cientistas podiam apenas oferecer estimativas e preencher com informações claras e detalhadas todas as áreas sobre as quais os especialistas científicos precisavam confessar sua dúvida ou ignorância.
Mas aconteceu que, muitas vezes, a ciência avançou de tal maneira que as concepções científicas que as tais verdades reveladas diziam incorporar foram superadas em poucas décadas. Visto que, para o pensamento baseado na suposta revelação por meios espirituais, admitir e corrigir erros é extremamente difícil, o resultado é que essas religiões e filosofias que se tinham como avançadas acabaram por fossilizar em dogma muitas noções que eram cientificamente defensáveis no século XIX ou início do século XX, mas hoje estão tão superadas quanto o geocentrismo ou o criacionismo das correntes mais obscurantistas das religiões tradicionais.

É o caso da doutrina kardecista, que surgiu em um meio razoavelmente culto e incorporou o espírito científico da segunda metade do século XIX (Allan Kardec escreveu suas obras nas décadas de 1850 e 1860) a ponto de se considerar “ciência”. Um dos amigos e primeiros adeptos de Kardec era um conhecido autor de livros de ciência popular e astrônomo: Camille Flammarion.

Flammarion gostava de especular sobre a possibilidade de vida em outros planetas, com tanto entusiasmo quanto Carl Sagan nos anos 1980 e 1990, apesar de ter muito menos informação. No seu tempo, pouco se sabia dos planetas além de seu tamanho e posição: apareciam aos telescópios, quando muito, como pequeninos círculos de luz vagamente manchados.

Procurando tirar leite de pedra, Flammarion, como alguns colegas, acompanhava o escurecimento periódico das manchas de Marte (hoje explicado como resultado do transporte de poeira pelo vento) e tentava explicá-lo como crescimento sazonal da vegetação, partindo daí para especulações sobre a avançada civilização sugerida pelos misteriosos (mas completamente ilusórios) “canais” avistados por astrônomos imaginativos que se esforçavam por encontrar padrões precisos por trás dos borrões fornecidos por suas lentes. Em outros planetas, não havia nem esse tipo de sugestão, o que não o impedia de fantasiar sobre a possibilidade de seres vivos em Júpiter ou Mercúrio.

Suas concepções influenciaram o espiritismo, para o qual a vida em outros planetas tornou-se um ponto crucial da doutrina – a Terra é apenas um entre inúmeros mundos habitados, nos quais os espíritos passam por um “aprendizado” antes de poderem se encarnarem em mundos mais avançados. Continua difícil refutar cabalmente essa idéia no que se refere a planetas de outros sistemas solares, que ainda não podemos observar em detalhes. Mas Kardec – e também Flammarion, quando atuou como médium – tinham em mente também a Lua, Marte, Vênus, Mercúrio e outros planetas sobre os quais hoje podemos ter certeza que não existe vida tal como a imaginavam.

“Todos os globos são habitados”, garantiu Kardec em O Livro dos Espíritos (1857). "Segundo os espíritos, de todos os mundos que compõem o nosso sistema planetário, a Terra é dos de habitantes menos adiantados, física e moralmente. Marte lhe estaria ainda baixo, sendo-lhe Júpiter superior de muito, a todos os respeitos...".

Ainda mais interessente sobre esse tema é A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo (1868) que pretendia ser a resposta de Kardec ao Gênesis bíblico, contar a “verdadeira” origem do Universo, da vida e da humanidade e demonstrar o caráter ao mesmo tempo científico e espiritual do espiritismo. Um capítulo inteiro foi escrito com base em supostas revelações a Flammarion de Galileu Galilei – que, na qualidade de espírito desencarnado, supunha-se capaz de viajar por todos os mundos a velocidade do pensamento.

Mas as revelações que Flammarion atribuiu ao mestre Galileu não eram mais que produto de seu próprio conhecimento somado a seus devaneios e especulações, como a astronomia e a astronáutica do século XX e XXI deixaram óbvio. Afirmou, por exemplo, que embora a face visível da Lua fosse deserta e inabitável, havia fluidos líquidos e gasosos que permitiam a vida na face oposta. Disse que o anel de Saturno era sólido e único (são muitos anéis, feitos de inúmeros fragmentos), ignorou os anéis ainda não descobertos de outros planetas, disse que Júpiter tinha quatro satélites (como se acreditava da época – mas hoje já são contados 63), Marte nenhum (tem dois) e que a Via Láctea é constituída de 30 milhões de estrelas (são centenas de bilhões).

Entendam-nos bem: isso não é dizer que Kardec ou Flammarion foram farsantes ou agiram de má-fé. Flammarion foi um cientista respeitado pelos pares até a morte e também foi, presumivelmente, sincero como espírita e médium. Assim como pode-se presumir boa-fé em um pajé de uma aldeia guarani, um xamã na Sibéria, uma ialorixá em Salvador ou um pai-de-santo no Rio de Janeiro. Pessoas podem induzir em si mesmas estados mentais no qual acreditam sinceramente manifestar espíritos ou deuses. Entretanto, por mais impressionantes que sejam essas manifestações, elas não podem realmente “saber” mais do que seus portadores realmente conhecem ou são capazes de imaginar dentro de seu universo cultural – por exemplo, os espíritos supostamente incorporados por pajés e pais-de-santo não discorrem sobre os anéis de Saturno porque são completamente alheios ao universo ou aos interesses de seu público.

Como foi só na década de 1960 que sondas puderam fotografar Marte de perto e revelar o lado oculto da Lua, espíritas de várias gerações posteriores puderam continuar impunes seus devaneios sobre astronomia e vida em outros planetas. Vários médiuns famosos descreveram em detalhes (freqüentemente contradizendo-se entre si) a vida nos outros planetas do Sistema Solar – inclusive, por exemplo, Chico Xavier em Cartas de uma Morta (1935), supostamente ditadas pelo espírito de sua mãe. Descrevia em Saturno habitações de estilo gracioso, vegetação azulada e mares rosados; em Marte, “homens mais ou menos semelhantes aos nossos irmãos terrícolas”, mas dotados de asas, que vivem em um planeta que tem oceanos, sistemas de canalização, vegetação avermelhada e “poucas montanhas”.

As sondas não mostraram nada de oceanos, canalização, vegetação e muito menos homens alados em Marte. Por ironia, lá descobriram, porém as maiores montanhas do Sistema Solar. Ninguém esperava por isso no século XIX, porque se supunha que Marte era um planeta “velho”, desgastado pela erosão.

Confrontados com a realidade, a maioria dos espíritas diria hoje que os supostos marcianos, saturninos etc. realmente existem, mas de uma maneira não física. Isso seria deslocar a doutrina espírita da ciência supostamente verificável para a vala comum dos dogmas tradicionais, pois uma civilização marciana invisível e inacessível à observação não é mais “científica” do que o Inferno dos cristãos. É contrariar a afirmação do próprio Kardec no primeiro capítulo de seu Gênese: “o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demostrarem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificará nesse ponto”.

Ademais, não era apenas de coisas espirituais que tais médiuns estavam falando: “Vi oceanos, apesar da água se me afigurar menos densa e esses mares muito pouco profundos. Há ali um sistema de canalizações, mas não por obras de engenharia dos seus habitantes, e sim por uma determinação natural da topografia do planeta que põe em comunicação contínua todos os mares”, escreveu Chico Xavier sobre Marte com base no suposto testemunho da genitora, sem falar das materialíssimas montanhas.

Não é só no campo da astronomia que fracassou a ciência dos espíritos. Também a biologia ensinada pelos desencarnados tende a mostrar-se de acordo com especulações científicas do seu tempo (ou com o grau de compreensão delas que tinham os médiuns), superadas poucas décadas depois. Em O Livro dos Espíritos, para explicar a Kardec o surgimento da vida na Terra e em outros mundos, seus informantes desencarnados perguntam: ''os tecidos dos homens e dos animais não encerram os germes de uma multidão de vermes que aguardam, para eclodir, a fermentação pútrida necessária à sua existência?''

Quando o livro foi publicado, uma pessoa bem informada, até mesmo um cientista, poderia ter respondido que sim, ou pelo menos que o assunto era controvertido. Havia quem acreditasse no surgimento de vida a partir de “fermentação pútrida”, nesses termos. Mas a idéia foi cabalmente desmentida por Louis Pasteur em 1861, meros quatro anos depois. Que a vida possa ter surgido de matéria não-viva em certas condições encontradas na Terra primitiva continua uma hipótese aceita, mas os vermes que parecem surgir da podridão certamente não são exemplo disso: nascem de ovos de moscas e besouros.

Também nesse campo os erros continuaram a se multiplicar toda vez que os médiuns consultaram os espíritos sobre fatos cientificamente verificáveis. Mais uma vez, pode-se tomar um exemplo de Chico Xavier: Evolução em Dois Mundos (1959), supostamente ditada por “André Luiz”, que supostamente foi médico sanitarista no Rio de Janeiro do início do século XX (claramente inspirado na figura de Carlos Chagas, mas sem se comprometer com detalhes).

Ao se referir à evolução da “mônada espiritual” através dos corpos materiais, afirma que “caminhou na direção dos ganóides e teleósteos, arquegossauros e labirintodontes para culminar nos grandes lacertinos e nas aves estranhas, descendentes dos pterossáurios, no jurássico superior, chegando à época supracretácea para entrar na classe dos primeiros mamíferos”.

Nesse caso, não se trata nem de afirmações cientificamente aceitáveis quando foram escritas, mas superadas mais tarde. Mesmo em 1959, não passavam de mal-entendidos típicos de leigos com conhecimento superficial de biologia e evolução. Os dinossauros não são “lacertinos” (lagartos) e mesmo no século XIX, quando a origem das aves ainda era controvertida, sabia-se que elas não descendiam dos pterossauros (seus ancestrais eram dinossauros carnívoros bípedes, da sub-ordem dos terópodes). Os primeiros mamíferos surgiram muito antes da época “supracretácea” (ou seja, o Cenozóico): são quase tão antigos quanto os primeiros dinossauros e isso é sabido desde fins do século XIX.

Estendemo-nos sobre o espiritismo por ser uma doutrina particularmente conhecida no Brasil, mas outras caíram na mesma armadilha. Ellen White, a profetisa fundadora dos Adventistas do Sétimo Dia, também disse (em 1846) ter sido transportada em espírito para Júpiter, “mundo com quatro luas”, onde a relva era de um verde vivo, os pássaros gorjeavam cânticos suaves e os habitantes se pareciam todos com Jesus, porque embora ali crescesse o fruto proibido, não o haviam comido. Depois foi a Saturno, “com sete luas” (as que os astrônomos conheciam na época – hoje são contadas pelo menos 60), onde encontrou o profeta Enoc, que estaria morando em uma de suas cidades.

Joseph Smith, fundador da Igreja dos Santos dos Últimos Dias (Mórmon), afirmou, em 1837, disse que a lua era habitada por homens e mulheres como na terra, que viviam até quase mil anos, tinham aproximadamente dois metros de altura e vestiam-se quase uniformemente, num estilo próximo aos dos quakers. Também nessa doutrina a existência de mundos habitados é crucial, pois Deus seria um homem ressuscitado e exaltado, mas de carne e osso, que vive em um planeta chamado Kolob e os mórmons podem se tornar deuses se seguirem seus mandamentos.

A Teosofia, outro produto do século XIX, descreve também detalhes da vida em Vênus e Marte (embora reconheça que a Lua é um mundo morto), mas é mais característica pelas detalhadas narrativas sobre o passado da Terra e da humanidade, em boa parte baseada em uma mistura de mitos gregos, hindus e budistas com especulações científicas do século XIX.

Lemúria, por exemplo. Citada por Helena Blavatsky em Ísis sem Véu (1877), havia aparecido pela primeira vez em 1864, como hipótese científica para explicar semelhanças geológicas entre a Índia e Madagascar – seria um continente desaparecido ao qual essas duas terras haviam pertencido, mas que afundara, na maior parte. Alguns biólogos sugeriram que a espécie humana talvez houvesse evoluído nesse continente hipotético, supostamente a pátria original dos primatas, numa tentativa de explicar a dificuldade de encontrar fósseis do "elo perdido" entre os primatas avançados e os seres humanos.

Os teósofos fizeram dessa especulação da segunda metade do século XIX uma certeza doutrinária. Entretanto, a tese tornou-se obsoleta com a descoberta, a partir de 1891, de fósseis pré-humanos na Ásia (inicialmente, Java e China) e a partir de 1924, de outros ainda mais antigos na África.

A própria idéia de continentes e pontes de terra desaparecidos por afundamento tornou-se obsoleta a partir dos anos 1960, com o mapeamento do fundo dos oceanos e a acumulação de evidências sobre o lento deslocamento dos continentes. Ficou então claro que a Índia e Madagascar estiveram de fato unidas em uma mesma massa de terra, o que explica as semelhanças geológicas, mas o movimento das placas tectônicas levou a Índia a separar-se há 88 milhões de anos e mover-se até sua atual localização no sul da Ásia.

Também a cronologia teosófica é um fóssil do século XIX. Em A Doutrina Secreta (1888), Blavatsky fornece uma “cronologia geológica esotérica”, combinando “dados científicos e ocultos”, para concluir que a Terra começou a se sedimentar há 320 milhões de anos (começando a vida a evoluir logo em seguida), o que hoje chamamos Mesozóico começou há 44 milhões e o Cenozóico há 7,87 milhões. Quanto ao Universo, começara a existir precisamente em 1.955.882.800 a.C., de acordo com sua interpretação da numerologia mítica das eras hindus.

Na época, essas estimativas eram compatíveis com o pensamento de muitos geólogos e da maioria dos biólogos evolucionistas. Podiam até ser consideradas arrojadas, pois a maioria dos físicos ainda se recusava a aceitar números tão grandes: antes que a energia nuclear fosse descoberta e compreendida, julgavam que o Sol e a Terra não podiam ter mais que umas poucas dezenas de milhões de anos, caso contrário já teriam esfriado completamente.

Entretanto, hoje essas concepções tornaram-se absurdamente acanhadas. Conforme a datação radioativa, a sedimentação começou há pelo menos 3,8 bilhões de anos (a própria Terra tem 4,6 bilhões), o Mesozóico há 251 milhões e o Cenozóico há 65,5 milhões. O início do Universo, o Big Bang, é hoje datado, de acordo com as melhores estimativas da velocidade e distância das galáxias, de há 13,7 bilhões de anos. Mas os teósofos remanescentes apegam-se às idéias de Blavatsky e seguidores com o mesmo fervor com que os evangélicos fundamentalistas dos EUA se apegam ao mito do Dilúvio e à criação do mundo há alguns milhares de anos.

Errar é próprio da ciência, mas apegar-se a erros do passado é característico do pensamento dogmático, seja religioso ou esotérico. Isso não quer dizer, bem entendido, que não possa haver valor espiritual ou ético nos ensinamentos espíritas, teosóficos ou cristãos de qualquer corrente. Apenas tais doutrinas não podem reivindicar validação científica para suas supostas revelações. Quem se identifica seus valores e tem fé neles, que esteja à vontade, mas saiba separá-los das alegações científicas e históricas que vêm no mesmo pacote.


Antonio Luiz M. C. Costa
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Ciência e Ficção Científica

Fonte: Carta Capital -
Coluna "Diálogos"
de 26/06/2008 15:40:03