Associação quer espiritualizar o Judiciário
Folha de S.Paulo - 19/05/2008
Eles defendem um Judiciário mais sensível às questões humanitárias, dizem que a maior lei é a de Deus, vêem na condenação penal e na própria função uma missão de vida, defendem o uso de cartas psicografadas nos tribunais e estimulam, nas audiências, a fraternidade entre vítimas e criminosos.
Discutir temas polêmicos, como o aborto, a eutanásia, o casamento gay, a pena de morte e as pesquisas de células-tronco, condenados pelas religiões cristãs, são alguns dos objetivos da recém-criada AJE (Associação Jurídico-Espírita) de São Paulo, que teve anteontem a primeira reunião deliberativa, e já existe no RS e no ES.
"O Estado é laico, mas as pessoas não. Não tem como dissociar e dizer: vou usar a minha fé só dentro do centro espírita", afirma o promotor Tiago Essado, um dos fundadores da AJE.
Embalada na esteira do crescimento da Abrame (Associação Brasileira de Magistrados Espíritas), que hoje reúne 700 juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores, e que aceita apenas togados como membros, a AJE surge com uma proposta de abranger todos os operadores do direito e já conta com 200 associados ou interessados, entre promotores, delegados de polícia e advogados, além de juízes.
Embora juristas não vejam ilegalidade no fato de juízes se reunirem em associações religiosas, a questão levanta discussões como:
1) o laicismo, princípio que prega o distanciamento do Estado da religião;
2) a contaminação de decisões por valores ou crenças de caráter religioso ou pessoal;
3) e o caráter científico do direito positivo, que deve se basear em verdades comprovadas, e não, como a religião, em verdades reveladas.
Além dos tribunais superiores (entre outros, o vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça, Francisco Cesar Asfor Rocha, é um dos integrantes da diretoria da Abrame), a convicção espírita permeou também o Conselho Nacional de Justiça, o órgão de controle externo do Judiciário.
"Não enxergaria nenhuma diferença entre uma declaração feita por mim ou por você e uma declaração mediúnica, que foi psicografada por alguém", diz Alexandre Azevedo, juiz-auxiliar da presidência do CNJ, designado pelo conselho para falar a respeito das associações.
A Folha levantou quatro decisões em que cartas psicografadas, supostamente atribuídas às vítimas do crime, foram usadas como provas para inocentar réus acusados de homicídio.
Segundo Zalmino Zimmermann, juiz federal aposentado e presidente da Abrame, o propósito da associação "é questionar os poderes constituídos para que o direito e a Justiça sofram mais de perto a influência de espiritualizar". "O objetivo geral é a espiritualização e a humanização do direito e da Justiça", diz.
Para o juiz de direito Jaime Martins Filho, a escolha de sua profissão não foi uma casualidade e, por isso, a exerce como uma missão de vida. "Não acredito em acaso, mas numa ordem que rege o universo, acredito em leis universais." E ele explica "a finalidade religiosa da associação".
"Dentro da liberdade de religião, são os juízes aplicando princípios religiosos no seu dia-a-dia. Temos um foco que é a magistratura, procurar trabalhar esses valores espirituais que estão relacionados com a própria religião dentro da magistratura", diz Martins Filho.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u403207.shtmlLeia também o brilhante comentário de Wálter Maierovitch em Carta Capital:
A lei dos espíritos
por Wálter Fanganiello Maierovitch
Carta Capital - 26/05/2008
No meio judiciário, além dos remendos ao Código de Processo Penal de 1941 enviados à sanção do presidente Lula, os juristas e operadores assombraram-se com a meta de “Espiritualizar a Justiça”, da recém-criada Associação Jurídico-Espírita de São Paulo. Ao lado da Associação Brasileira de Magistrados Espíritas (Abrame), que congrega 700 juízes, desembargadores e ministros, a Jurídico-Espírita, com 250 integrantes, abriu-se aos bacharéis em Direito e a outros interessados, como acadêmicos, peritos e servidores judiciários.
Essas associações privadas são legítimas porque a criação é permitida pela nossa Constituição republicana. Por contribuírem para aperfeiçoar e humanizar as normas jurídicas, em especial as de natureza criminal, contam com objetivos nobres, de relevante interesse social. A roda pega, no entanto, quanto ao que venha a ser “espiritualizar” a Justiça, os julgadores, os promotores e os operadores.
A nossa Constituição adotou o princípio do Estado laico (não religioso), seguindo, no particular, a francesa, que foi a primeira a estabelecer a laicidade como elemento fundamental do Estado Nacional. Ou melhor, separa-se a esfera secular-laica daquela místico-espiritual. Mais ainda: a laicidade está ínsita no sistema democrático pluralista desejado pelos constituintes.
Portanto, não se confundem o Direito positivo, com as suas leis a obrigar os cidadãos, e a religião, com os seus preceitos a reger as consciências. Ao contrário do que sucede num Estado teocrático, o juiz, como parte de um dos poderes laicos, aplica o Direito objetivo, nascido no Parlamento e levado à sanção do Executivo, na solução dos conflitos.
Nos Estados teocráticos, como já sucedeu, na velha lição de Fustel de Coulanges, com os gregos e os romanos, a lei é a própria religião. Não se deve olvidar que, primitivamente, a lei era uma parte da religião.
Como exemplo da tal “espiritualização da Justiça”, alguns integrantes da nova associação falaram, consoante noticiado pela imprensa, na aceitação das cartas psicografadas por médiuns como meio processual de prova, na busca da verdade real. Para eles, trata-se de meio de prova lícito, não vedado pela Constituição nem pela legislação processual, que admite, para estabelecer a verdade dos fatos, os meios moralmente legítimos, ainda que não especificados nos códigos.
Por diversas vezes, perante juízes leigos do Tribunal do Júri, já foram indevidamente apresentadas cartas psicografadas, até uma famosa, recolhida pelo falecido médium Chico Xavier. Como, perante o Tribunal do Júri, os jurados sorteados que formam o Conselho de Sentença não precisam explicitar os motivos do convencimento, falou-se em muitos absolvidos por força das cartas psicografadas.
Segundo os constitucionalistas franceses, italianos e alemães, o sistema de provas nos processos judiciais está apoiado no que provém do secular, do terreno. Ou seja, as provas psicografadas por médiuns são contrárias ao direito laico-material e, portanto, ilegítimas.
Como nos julgamentos de Deus, ou ordálias, os relatos e testemunhos de espíritos colocados em carta não podem servir de convencimento ao juiz, ainda que este se apresente como espiritualizado. Imagine-se como seria a contraprova ou uma contradita ao testemunho considerado falacioso, provindo do além-túmulo e materializado em papel escrito.
Na Antiguidade, os povos primitivos e semibárbaros submetiam o réu a certas provas para que Deus indicasse o resultado ao juiz. Assim, o magistrado não julgava, mas apenas colhia o entendimento de Deus.
Entre os hebreus, existia a chamada prova das águas amargas. A mulher suspeita de adultério tinha de beber águas amargas. Deus, então, julgava e, se ela fizesse careta ou lacrimejasse, seria culpada. Cabia ao juiz, somente, mandar apedrejá-la até a morte. No sistema das ordálias, a historiografia aponta para a prova da sorte, a prova pelo fogo, a prova pelo cadáver, a do pão e do queijo, a das serpentes. Nessa última, o acusado era lançado no meio de víboras, acreditando-se que Deus permitiria que apenas o culpado fosse picado e envenenado.
Depois de séculos, coube ao papa Gregório IX avisar que Deus não interferia nos julgamentos dos homens.
A interferência de espíritos nos julgamentos dos vivos em processos perante o Poder Judiciário, numa sociedade democrática, pluralista, com liberdade de expressão e tolerância, representa uma indevida intromissão do religioso num Estado laico. O espírito que se achar excluído, peço que envie um e-mail para walterfm@uol.com.br.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/app/coluna.jsp?a=2&a2=5&i=1002
Um comentário:
Agora sim, estamos f*d*d*s. Vou me mudar pro Irã, lá a coisa parece estar melhor.
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